Yorranna Oliveira

Achei a imagem aí de cima pesquisando no Google. E ela define perfeitamente um pouco do que eu sou e da proposta do blog: tem de tudo um pouco, e um pouco de quase tudo o que gosto. Aqui você vai encontrar sempre um papo sobre música, cinema, comunicação, literatura, jornalismo, meio ambiente, tecnologia e qualquer outra coisa capaz de me despertar algo e a vontade de compartilhar com vocês. Entrem e divirtam-se!

quinta-feira, 30 de abril de 2009

“Ser repórter é um jeito de estar no mundo”


A repórter especial da revista Época, Eliane Brum, esteve em Belém, no dia 7 de abril, para ministrar a oficina “Em Busca do Personagem: Um olhar singular”, pelo projeto Rumos Itaú Cultural. O evento foi realizado no Instituto de Artes do Pará (IAP), onde Eliane concedeu entrevista a este blog.

Texto: Yorranna Oliveira
Foto: Adison César

Quando pisou pela primeira vez numa redação, em maio de 1988, usava botas de couro pretas até o meio da coxa, micro vestido xadrez de lã e a cabeça era quase careca. “Uma mulher dos anos 80”, avalia. Os colegas do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS), fizeram apostas para ver quantos dias aquela mocinha punk duraria por lá.

Eliane acabara de ganhar um concurso universitário de jornalismo. Sua matéria retratava as filas que as pessoas enfrentam do nascimento até a morte. O prêmio: um estágio no jornal. “Os jornalistas disseram que o que eu fazia não era jornalismo. Os publicitários disseram que era, sim. Como havia mais publicitários que jornalistas, eu ganhei”, explica.

Os dias no jornal se transformaram em onze anos e revelaram uma das mais talentosas e premiadas jornalistas do Brasil.

Aos 42 anos de idade, quase 21 de carreira, e com os principais prêmios de jornalismo do país, como “Esso” e “Vladimir Herzog”, Eliane Brum inspira estudantes e profissionais da área pelo modo como encara essa forma de vida chamada reportagem.

Para Eliane, ser repórter é fazer “o exercício constante da dúvida”, onde precisamos questionar nossas certezas e as dos outros. Assim como devemos olhar de verdade para o outro, porque “olhar para ver é um ato de insubordinação” e escutar por completo as histórias que nos são honradas. Afinal, “quando as pessoas param de falar, elas continuam nos contando”, ensina.

A mulher de fala mansa e jeito de moleca, e que acorda todos os dias com a esperança de viver uma grande aventura, compartilha conosco suas experiências na literatura da vida real. Sim, porque Eliane se considera uma escritora de histórias reais.

Veja os melhores trechos da entrevista:

Yorranna Oliveira - O que é o jornalismo para você?
Eliane Brum - É o que eu sou. Ser repórter define minha vida. É um jeito de estar no mundo. O que me interessa no jornalismo é ver como as pessoas dão sentido as suas vidas, a capacidade de reinvenção. Acho que assim eu dou sentido a minha vida.

Uma boa matéria?
É aquela que tem uma escuta ampla da realidade, que traz para o leitor a dimensão da complexidade do real.

O que é preciso para ser um bom repórter?
Um bom repórter é aquele que sabe escutar, que duvida de suas certezas e não se deixa enganar pela banalidade do cotidiano.

Você é uma repórter que faz jornalismo literário, algo pouco comum nas redações. Dá para fazer esse jornalismo na correria da cobertura diária?
Não gosto de me catalogar, sou jornalista. Fico feliz quando me reconhecem assim, fico honrada. O tempo não é desculpa. Claro que, às vezes, você precisa brigar por ele, mas ele não é determinante. Um exemplo bem simples foi quando fiz uma matéria para o jornal (Zero Hora) sobre a inauguração do MC Donald’s em Porto Alegre - para você ver como sou velha (risos). Foi a primeira vez que começaram a reparar no meu texto. Quando cheguei, percebi que havia muitos velhinhos na praça onde seria a inauguração. Eu sempre tento dar a volta, ver a coisa por outro ângulo, literalmente. Então, resolvi contar a chegada daquilo pelo olhar dos velhos. A matéria saiu com todos os números, quantos hambúrgueres foram vendidos e como os velhos viam aquela passagem do tempo e a chegada da modernidade.

Cada reportagem é uma transformação, porque cada vez que contamos as histórias dos outros nos transformamos. Qual a reportagem que mais a transformou?
São tantas, mas vou pela mais recente, a que fiz para a Época ano passado [A mulher que alimentava] com a Ailce. Eu acompanhei a vida dela durante 115 dias até sua morte. Ailce mudou até o meu jeito de viver. Ela viveu intensamente. Eu não gostava de falar de morte. Comprei meu túmulo nas férias, no lugar que escolhi para ser enterrada.

E onde fica?
Num lugar chamado Barreiro, em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul. Foi lá que passei os dias mais incríveis da minha infância, se tenho um lugar no mundo, é lá. O cemitério fica na colina, meu túmulo fica embaixo de uma árvore. Um lugar silencioso, um silêncio que quase se pode tocar. Comprei o túmulo pelo preço de uma vaca. Dei a vaca para uma festa.
Meu pai [Argemiro] me levava para visitar o túmulo da professora dele, Luzia. Ela trouxe as letras para minha família. Meu pai foi o primeiro da família a ler e escrever. Isso abriu o mundo para ele e para mim.

Você acha que a sensibilidade é algo que se possa desenvolver com o tempo?
A vida é um vir a ser. Se tornar aquilo que a gente é. A gente desenvolve a sensibilidade olhando, estando aberto. Precisamos ter coragem de errar, a gente está nessa vida para tentar. O problema é que se leva tanta porrada nesse mundo que a gente embrutece. Mas a gente não pode deixar isso nos embrutecer, continua te abrindo. Se abre, se entrega, se joga.

Seus textos são marcados por emoção. Como escrever com sentimento sem ser piegas?
Apuração. Quando não tem apuração, você corre mais risco de ser piegas. A apuração te dá as informações precisas e aí você não precisa ficar fazendo firulas.

Qual o seu olhar sobre a Amazônia?
Existem tantas Amazônias, e eu não conheço quase nada... Eu sou fascinada. As coisas mais maravilhosas que vivi foram na Amazônia. Foi onde “mais para dentro” do país eu fui. Fui mais para dentro de mim mesma. A Amazônia te exige isso, que expandas teus limites. Todo dia tu descobres o que tu és. Eu voltei mais eu.

Um jornalista da Amazônia? Por quê?
Lúcio Flávio Pinto. Gosto do trabalho dele, acho importante o que ele faz. Tem o Altino Machado também, com o trabalho que ele faz com o blog dele no Acre.

Você é contra ou a favor do diploma em Jornalismo?
Tenho dúvidas. Só não tenho dúvida de que a faculdade de jornalismo precisa melhorar, tem muitas questões éticas que precisam ser discutidas e a universidade é o melhor espaço para isso.

Leia aqui matérias de Eliane Brum:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI10410-15257,00-A+MULHER+QUE+ALIMENTAVA.html

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG66781-6014,00-O+POVO+DO+MEIO.html

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Caio no amanhecer!

Acordei com um trecho do conto Os Companheiros, do livro Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu (1948-1996). Numa sintonia entre literatura e cinema, lembrei de Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci. No conto, ele diz: "uma história nunca fica suspensa: ela se consuma no que se interrompe, ela é cheia de pontos finais internos. O que a gente imagina que poderia ser talvez uma continuação às vezes não passa de um novo capítulo". Em Último Tango (um dos meus filmes favoritos), Paul - personagem de Marlon Brando - tem uma frase que arrebata e se une ao pensamento de Caio, onde "tudo o que termina começa de novo".

terça-feira, 28 de abril de 2009

Feliz no nome e na alma

Em hebraico, Simchá significa alegria. No Aurélio, a palavra está lá num júbilo de contentamento, que se apodera do corpo e alma, contaminando todos ao redor. Esse sentimento tão humano é o nome e estado de espírito da artista plástica paraense Alegria Gabbay.

Nome mais apropriado impossível. O pai, filho de judeus que vieram do Marrocos para a Amazônia, soube fazer escolhas. “Ele quis homenagear a minha avó materna”, diz. Alegria é daquelas mulheres em constante festa consigo e com os outros. Ela demonstra na fala expansiva, acompanhada por brincadeiras e sonoras gargalhadas. Gargalhadas de quem sorri para as coisas boas e ruins da vida. Risos de quem encontrou na alegria o melhor jeito para se viver.

“Dizem que faço jus ao nome. Agradeço sempre a Deus por ter a família que tenho. Isso é fundamental. Procuro estar sempre de bem, crescendo com as dificuldades, convivendo e respeitando as diferenças, valores que recebemos de nossos pais e tentamos passar para nossos filhos”, ressalta.

Casada, mãe de José, 28; Maluf, 26 e Bruno, 22 anos, Alegria vive cercada pela família. Os filhos moram todos com ela. “Opção deles”, destaca. Nascida em Belém, num lar de sete irmãos, criados entre as diversões da infância e a preservação das tradições, a artista se inspira nas heranças da cultura judaica para desenvolver seu trabalho. “Tenho um verdadeiro fascínio em pintar esse tema. A riqueza de detalhes e simbolismos favorecem”, afirma.

Formada em Letras pela UFPA, mãe, esposa e diretora de uma empresa de exportação, Alegria conseguiu ao longo dos anos conciliar essas várias mulheres com a artista plástica. Suas telas de temas religiosos, abstratos, entre outros enfoques já foram expostas em museus e galerias da capital paraense. “É possível se você aquilo gosta. Estou com o projeto de uma nova exposição ainda para este semestre”, adiante. Inspirada numa viagem a Israel feita ano passado, a exposição terá como tema “O oriente e suas nuances”. E sempre acompanhando a mãe, o filho Bruno. “Ele faz questão de documentar tudo”, diz

Pintar para Alegria representa prazer. Um momento de lazer nas horas vagas. Por isso ela nunca se interessou muito em mergulhar no assunto. Quando começou a traçar suas primeiras pinceladas, em 1976, o pai sempre dizia. “Você tem talento, você precisa estudar e desenvolver essa habilidade”. Mas a timidez falou mais alto e ela não foi. Nessa época, pintou três quadros de temática abstrata, hoje perdidos na memória. “Nem sei mais onde estão. Devem estar na casa de algum parente. Porque desde que comecei a pintar nunca comercializei, eu pintava e dava pra algum parente. Uns viam, gostavam, pediam, eu pintava. Mas nunca quis ter aquele compromisso”, conta.

O verdadeiro despertar para arte veio com a morte do pai, Maluf Gabbay, em 1985. Com três dias de trabalho, retratou seu Maluf. A homenagem póstuma inaugurava a figura humana na obra da artista. “Fiz sem conhecer o mínimo da técnica, nem sei como consegui. Hoje, com os conhecimentos adquiridos sobre o assunto, com os cursos que fiz, vejo um monte de defeito, mas preferi não retocá-lo, para manter a autenticidade”, explica.

Desde esse dia, não parou mais e com o tempo passou a fazer cursos, desenvolvendo variadas técnicas. “Já fiz técnica mista, nanquin sobre papel, acrilex sobre tela em seda e óleo sobre tela e algumas abstratas. Muitos trabalhos foram feitos, com ajuda e supervisão da querida professora, a artista plástica Cristina Monice. com que me reunia a um grupo pequeno de alunas, e passávamos as tardes mais divertidas e agradáveis, aprendendo com sua calma e habilidade para ensinar”, relembra.

A tinta óleo, no entanto, domina as preferências. “Ela é para vida toda. Já viajei muito, já tive oportunidade de ver técnicas com outros materiais, mas só a tinta óleo garante essa qualidade ao trabalho”. Hoje, Alegria Gabbay não pinta tanto quanto antes, mas ainda dedica as horas calmas da noite para o “hobby”. “Eu adquiri certa alergia a tinha óleo, pelo acumulo dos anos mesmo. E como eu só gosto da tinta óleo, não produzo muito. Quando pinto é no horário da noite, por ser mais tranquilo, em casa, no ateliê”, diz.

No clima de fraternidade e harmonia de seu recanto familiar, Gabbay absorve mais inspiração para as novas criações. Nesse mesmo ambiente, ela alimenta sua folia e crença na vida. “Sempre vai ter uma luz no fim do túnel. Mesmo com as adversidades, podemos crescer e acreditar que dias melhores virão”.

domingo, 26 de abril de 2009

Um bangalô de mestre

Sob as ruínas da padaria do avô português, uma das primeiras de Icoaraci, o bangalô do diretor teatral Salustiano Vilhena, 66, emerge das entranhas do passado e teima em sobreviver à passagem dos anos e ao avanço da modernidade.

A placa em madeira embaixo da caixa de correio confirma o endereço: Salustiano. Estamos diante da casa de Mestre Salu, como seus alunos de francês e discípulos do teatro o chamam. Não é uma casa simplesmente, mas um santuário de artes que conhecemos ao passar pelo portão de ferro, número 132 da travessa Itaboraí.

Evita, Maylon e Caco são os que primeiro recebem os visitantes. 'Uma homenagem a Evita Perón', diz Salustiano. Os três cachorros fazem companhia a um dos fundadores do grupo 'Gruta de Teatro' e atual diretor do 'Má Companhia', ambos surgidos em Icoaraci.

Entra-se com cuidado no lugar, absorvendo o cheiro das plantas, o silêncio que paira no ar. O clima muda. O tempo também. Talvez seja pelo poço desativado ou pela imensidão do quintal, tomado por verde, algo cada vez mais incomum nas atuais construções da 'Vila Sorriso'. 'Li numa matéria que Icoaraci está sofrendo o processo da família canguru. Os filhos casam e não saem de casa, constroem as suas no quintal da família e vão tomando conta do quintal e derrubando as plantas', comenta.

Varandas circundam toda a casa. Na parte da frente, uma longa mesa de madeira, daquelas que se encontram na casa de nossos avós, em algum interior do Pará. 'Os meninos (sobrinhos, os dois filhos adotivos e a irmã) vêm aqui tomar café à tardinha'. No canto esquerdo da mesma varanda, duas cadeiras de madeira ficam entre um pé de máquina enferrujado com tampo de mármore, fazendo as vezes de mesa. Há pés, aliás, por toda a parte. No pedal, um ferro de passar roupa a carvão, relíquia dos costumes e hábitos dos séculos XIX e XX, sinalizando que o passado ainda vive ali.

Mestre Salu contempla o antigo. Uma forma de reverência à memória e à história, que ele faz questão de preservar. Duas grandes portas saindo do chão até o teto, na entrada principal da casa, se abrem ao mundo lá fora. São duas peças resgatadas do abandono da sarjeta. Onde todos viam lixo, Salustiano só encontrava arte. 'Essas são portas do primeiro mercado municipal de Icoaraci, tirei da rua, porque quando o mercado foi destruído, eles simplesmente as jogaram fora. Peguei e criei logo utilidade pra elas', relembra. Foi assim com o suporte de abajur, talhado em ferro, na luminária ao lado do sofá. 'Peguei num lixo no Rio de Janeiro, na década de 70. Olhei e pensei: mas, nossa isso vai dar um abajur liiindo, vou levar!', conta.

Um antigo cofre de igreja, todo em madeira, virou suporte para o vaso de plantas da sala de estar. Esse ele ganhou de presente do amigo, o restaurador João Mercês. Muitos objetos da casa, por sinal, são presentes de João, conta o diretor. O ambiente é um mergulho numa outra dimensão. Repleta de recordações de família e viagens, cada peça conta parte da história de Mestre Salu. Parece feita de retalhos, costurados ao longo dos 13 anos que ele a habita. Recortes de viagens, passeios, trabalhos, amizades, heranças de família. O verdadeiro tecido de uma vida. Anjinhos em madeira, tocando música, comprados na Espanha. Máscaras chinesas, africanas, brasileiras e elementos afins, adquiridos em incursões por países como França, Bélgica, Itália, Inglaterra ou presenteados por algum aluno ou amigo. Quadros de artistas, como PP Condurú e Antar Rohit, também decoram uma das paredes da sala.

Três potes de porcelana dispostos entre os sofás da sala para 'Salu' contar novas histórias. 'Esses potes são ingleses e franceses. Era hábito em Belém ter esse tipo de objeto, porque eram enviados para cá, trazendo essências', informa. Hoje, um deles recebe graciosamente dois guarda-chuvas e uma bengala com cabeça de cavalo, comprada numa cidade à beira do Rio Sena, na França.

No andar superior, três grandes cruzes. E apesar da casa ser repleta de imagens sacras, o dono não se diz religioso, apenas admira a beleza artística. No lado esquerdo da sala, no detalhe da escada, santos. De materiais, causas e origens diversas, eles ficam expostos num tipo peculiar de oratório, herança também de gerações da família Vilhena. Aponta para o Santo Menino Jesus de Praga e diz: 'Ele é feito todo em madeira, é do século XVIII, foi minha tia quem me deu. De vez em quando ele sai para participar de uma gincana, mas muito de vez em quando'.

O buffet da avó Maria delimita a fronteira entre salas de estar e jantar. Nele, dois castiçais, tão antigos quanto o cômodo, preservam o tempo. 'Quando comecei a me entender por gente, eles já existiam'. Na cozinha também fica a cristaleira, jogos e mais jogos de xícaras, pires, pratos, copos, garrafas, jarras de porcelana, vidro e cristal. Uns de família, outros de viagens ou simples idas ao comércio do centro da cidade.

Na escada, que leva ao quarto, três faróis de navio chamam atenção. Pendurados nos degraus, foram entregues pelo pai do ator. E eles ainda funcionam. Em sua extensão, quatro máscaras em tamanhos diferentes confirmam se tratar da casa de um artista. 'São as mesmas máscaras, duas grandes e duas pequenas, uma da tragédia e a outra da comédia', ressalta. Entre eles, um sino, um turíbulo e um chocalho de boi. 'Comprei no Maranhão imaginando um belo elemento para alguma montagem. Porque quando compro algo, sempre penso que pode ser utilizado numa peça teatral'.

O bangalô de Salustiano é pequeno. Só quintal e varanda realmente são grandes. No interior da residência, com seus tijolinhos à mostra, há apenas o banheiro, o quarto de hospedes, uma cozinha, as salas de estar e jantar e o quarto do diretor no mezanino. Nos retalhos a costurar o ambiente intimista do local, as portas ficam sempre abertas para quem quiser entrar. Não à toa, elas se espalham por todos os cantos. 'Casa para mim tem de ser agradável, porque afinal passamos a maior parte da nossa vida dentro dela'.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Transformações (Uma fábula)

Caio Fernando Abreu

Feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se modificaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisa assim.

Eram dias parados, aqueles. Por mais que se movimentasse em gestos cotidianos - acordar, comer, caminhar, dormir, dentro dele algo permanecia imóvel. Como se seu corpo fosse apenas a moldura do desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos, olhos fixos na distância. Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E não seria verdade. Nesses dias, estava presente como nunca, tão pleno e perto que estava dentro do que chamaria - tivesse palavras, mas não as tinha ou não queria tê-las - vaga e precisamente de: A Grande Falta.

Era translúcida e gelada. Tivesse olhos, seriam certamente verdes, com remotas pupilas. À beira da praia certa vez encontrara um caco de garrafa tão burilado pelas ondas, areias e ventos que cintilava ao sol, pequena jóia vadia. Apertou-o entre os dedos, sentindo um frio anestésico que o impedia de perceber as gotas de sangue brotando mornas da palma da mão. Era assim A Grande Falta. Pudessem vê-lo, pudesse ver-se, veriam também o sangue, ele e os outros. Acontece que tornava-se invisível nesses dias. Olhando-se ao espelho, sabia de imediato que estava dentro Dela. No vidro, além dele mesmo, localizava apenas um claro reflexo esverdeado.

Ela estava tão dentro dele quanto ele dentro Dela. Intrincados, a ponto de um tornar-se ao mesmo tempo fundo e superfície do outro. Amenizava-se às vezes no decorrer do dia, nuvens que se dissipam, turvo de água clareando até o cair da noite surpreendê-lo nítido, passado a limpo, passado a ferro. Então sorria, dava telefonemas, cantava ou ia ao cinema. Mas em outras vezes adensava-se feito céu cada vez mais escuro, turvo agitado subindo do fundo, vidro bafejado. Sem dormir, fosforescia entre os lençóis ouvindo os ruídos da madrugada chegarem como abafados por uma grossa camada de algodão. Dissipava-se ou concentrava-se na manhã seguinte e, concentrando-se, não era uma manhã seguinte, mas apenas uma fluida e mansa continuação sem solavancos.

Seu maior medo era o destemor que sentia. Íntegro, sem mágoas nem carências ou expectativas. Inteiro, sem memórias nem fantasias. Mesmo o não-medo sequer sentia, pois não-dar-certo era o natural das coisas serem, imodificáveis, irredutíveis a qualquer tipo de esforço. Fosse íntimo das águas ou dos ares, teria quem sabe parâmetros para compreender esse quieto deslizar de peixe, ave. Criatura da terra, seu temor era quem sabe perder o apoio dos pés. E criatura do fogo, A Grande Falta crepitava em chamas dentro dele.

Sua invisibilidade no entanto não o invisibilizava: encadernava-o meticulosa em um determinado corpo e uma voz particular e uns gestos habituais e alguns trejeitos pessoais que, aparentemente, eram ele mesmo. Por isso não é verdade que não o veriam. Veriam e viam, sim, aquela casca reproduzindo com perfeição o externo dele. Tão perfeito que nem ao menos provocava suspeitas aumentando as pausas entre as palavras, demorando o olhar, ralentando o passo daquele falso corpo.

Atrás da casca, porém, o cristal incandescia. Debaixo da terra, fogo-fátuo soterrado tão profundamente que a pele nem reluzia.

Alguma coisa que jamais teria, e tão consciente estava dessa para sempre ausência que, por paradoxal que pareça, era completo nesse estado de carência plena. Isso acontecia apenas quando dentro Dela, pois ao desembarcar, em vez de sorrir ou fazer coisas, freqüentemente limitava-se a chorar penoso como se apenas a dor fosse capaz de devolvê-lo ao estágio anterior. A dor desconsolada e inconsolável, em soluços que o sacudiam cada vez mais fortemente, a cada um deles partindo-se a casca, quebrando-se a moldura, rachando-se o vidro, apagando-se o fogo.

Como uma outra espécie de felicidade, esse desembaraçar-se de uma também felicidade. Emerso, chafurdava em emoções: tinha desejos violentos, pequenas gulas, urgências perigosas, enternecimentos melados, ódios virulentos, tesões insaciáveis. Ouvia canções lamurientas, bebia para despertar fantasmas distraídos, relia ou escrevia cartas apaixonadas, transbordantes de rosas e abismos. Exausto, então, afogava-se num sono por vezes sem sonhos, por vezes - quando o ensaio geral das emoções artificialmente provocadas (mas que um dia, em outro plano, aquele da terra onde, supunha, gostava de pisar, aconteceriam realmente) não era suficiente - povoado com répteis frios, a tentar enlaçá-lo com tentáculos pegajosos e verdes olhos de pupilas verticais.

Não saberia dizer com certeza como nem quando aconteceu. Mas um dia - um certo dia, um dia qualquer, um dia banal - deu-se conta que. Não, realmente não saberia dizer ao menos do que dera-se conta. Mas foi assim: olhando-se ao espelho, pela manhã, percebeu o claro reflexo esverdeado. Está de volta, pensou. E no mesmo instante, tão imediatamente seguinte que confundiu-se com o anterior, cantava, novamente ele mesmo. No segundo verso, pequena contração, tinha novamente entre os dedos o caco de vidro luminoso. Mas antes que a mão sangrasse, havia preparado um drinque, embora fosse de manhã, e bebia lento, todo intenso. Antes de engolir o líquido, seu corpo ganhou vértices súbitos, emoldurando o desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos abertas, olhos fixos na distância.

Foi um dia movimentado, aquele. Sua casca partia-se e refazia-se, entardecer sombrio e meio-dia cegante intercalados. Fumou demais, sem terminar nenhum cigarro. Bebeu muitos cafés, deixando restos no fundo das xícaras. Exaltou-se, ausentou-se. No intervalo da ausência, distraía-se em chamá-la também, entre susto e fascínio, de A Grande Indiferença, ou A Grande Ausência, ou A Grande Partida, ou A Grande, ou A, ou. Na tentativa ou esperança, quem saberia, de conseguindo nomeá-la conseguir também controlá-la.

Não conseguiu. Desimportou-se com aquilo. Tomado a intervalos pelo anônimo, atravessou a tarde, varou a noite, entrou madrugada adentro para encontrar a manhã seguinte, e outra tarde, e outra noite ainda, e nova madrugada, e assim por diante. Durante anos. Até as têmporas ficarem grisalhas, até afundarem os sulcos em torno dos lábios. Houvesse uma pausa, teria pedido ajuda, embora não soubesse ao certo a quem nem como. Não houve. Mas porque as coisas são mesmo assim, talvez por certa magia, predestinações, sinais ou simplesmente acaso, quem saberá, ou ainda por ser natural que assim fosse, e menos que natural, inevitável, fatalidade, trágicos encantos - enfim, houve um dia, marco, em que o tocaram de leve no ombro.

Ele olhou para o lado. Ao lado havia Outra Pessoa. A Outra Pessoa olhava-o com cuidadosos olhos castanhos. Os cuidadosos olhos castanhos eram mornos, levemente preocupados, um pouco expectantes. As transformações tinham se tornado tão aceleradas que, no primeiro momento, não soube dizer se a Outra Pessoa via a ele ou a Ela, se se dirigia à moldura, à casca, ao cristal ou ao desenho, ao corpo original, às gotas de sangue. Isso num primeiro momento. Num segundo, teve certeza absoluta que se tinha desinvisibilizado. A Outra Pessoa olhava para uma coisa que não era uma coisa, era ele mesmo. Ele mesmo olhava para uma coisa que não era uma coisa, era Outra Pessoa. O coração dele batia e batia, cheio de sangue. Pousada sobre seu ombro, a mão da Outra Pessoa tinha veias cheias de sangue, latejando suaves.

Alguma coisa explodiu, partida em cacos. A partir de então, tudo ficou ainda mais complicado. E mais real.

(Presentinho da amiga Dani Franco)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Noturna Belém

O retrato de um casamento em pedaços. Duas vidas divididas pela distância entre corpo e alma. Duas vidas que se unem apenas na pior de todas as solidões: a da presença ausente do outro. Em seu novo conto “A Noite”, o futuro escritor Gleidson Gomes descreve o afastamento de um casal, tendo como cenário a cidade que tanto o impressiona: Belém.

Belém entranha-se no conto. Ela assiste o abismo de uma relação, transformando-se na verdadeira protagonista da estória. “Essa cidade me invade”, diz Gleidson. E essa invasão contamina o leitor, através do ritmo frenético da noite, com seus personagens, figuras, paisagens, sons.

A Noite
À Rafael Maciel

"grito por seu nome sem parar, sem saber onde vou" Marcelo Val

Era insônia, pensou, ou a aparelhagem na sua cabeça fazendo o corpo pulsar no ritmo do tecnobrega. Inquieto, levantou, abriu uma porta, a noite invadindo o quarto inteiro, o frio estuprando o calor do seu corpo. Olhou a nudez das ruas da sacada, as esquinas sonolentas, a cantinela triste da chuva fina no asfalto. Fechou os olhos: ainda havia as ruas, as esquinas, a chuva. Vestiu aquela bermuda cinza, a camiseta azul, tão precárias quanto o sexo que praticava com ela há algum tempo. Observou suas formas avantajadas, o desejo murcho entre as pernas, os cabelos manchando de sangue os lençóis. Não soube ao certo o que sentia, mas sentiu.

No escuro, atravessou o quarto e parou do outro lado de si. Não era ele que estava ali, havia outro, e pensava nela, os olhos grandes, lhe comendo, triturando. De repente sentiu-se frágil, algo se quebrando dentro dele, as mãos desesperadas tentando catar os cacos, sangrando. Chegou ao banheiro sem querer, um sentimento estranho escalando seu peito. Perdido, acendeu a luz, e cego encontrou-se no espelho. Aos poucos viu seu rosto recompondo-se, materializando-se como um fantasma. Percebeu novas linhas sob os olhos, as antigas cada vez mais profundas e escuras: era insônia, teve certeza.

Fumaria um, pensou, como sempre fazia quando não entendia o que se passava com ele, com ela, entre eles. E em seguida, lembrou que aquela semana não tinha comprado, a consciência flutuando como urubus sobre cadáveres de crianças. Estava irritado, a música o chicoteando, sozinho naquele universo amarelo, a escuridão lhe espreitando da cozinha, a lucidez lhe enlouquecendo. Havia um muro de silêncio entre os dois, erguido em conjunto dia após dia, as carnes muito próximas, as almas desconhecidas. Ele sentia. Ela sabia. Chorou sem perceber, as lágrimas em erupção nos olhos, larva escorrendo pelo rosto.

Ainda estavam no primeiro andar de suas vidas juntos, fingida lua de mel, e era amargo o gosto que ele tinha na boca. Quis vomitar, os espasmos distendendo por completo seu corpo, pedaços de carne morta entupindo a pia branca. O vômito misturou-se às lágrimas, a dor no estômago à dor no peito. A cabeça entrou na dança, o psicodélico agora era brega, sorriu, fiapos dela entre os dentes.

Saiu.

A noite era uma puta bêbada cantando sob a chuva um melody antigo com cadência de bolero. Os edifícios eretos, a puta toda sentada sobre eles, milhares de línguas frias espalhadas pelo ar, lambendo o rosto dele, os braços nus. A Almirante gemia mais adiante, toda molhada. Ela não entenderia, pensou alto, tinha sombra de passarinho, como uma pintura de Magritte. Lembrou das poucas palavras cuspidas no café da manhã, dos diálogos dos pratos, o silêncio gritando na cara dos dois.
Estavam vivendo juntos sozinhos um com o outro. Já não lembravam a geografia de seus corpos, o gosto das carnes, o agridoce da buceta, o amargo do cu, o salgado da pica. Caminhava na Almirante, sabia onde estava, achava. E começou a observar a maciez das luzes, os carros correndo, como em câmera lenta, chiando no asfalto, o verde mergulhado na escuridão, roncando. É o baseado, pensou, e em meio a tanta confusão, lembrou. Tudo estava parado, e se movia, com contornos diferentes, as coisas mortas ganhando vida. De repente, se deu conta do quanto andara e se perdera, parado, do qualquer lugar onde chegara. Sabia que era Belém, mas poderia ser Macondo, e queria Tel Aviv. Calmo, desesperou-se. Reconhecia as ruas onde pisava, mas nunca soube como chamá-las, se é que elas tinham nomes. Foi então que entendeu, quis entender, pensou entender, que sempre esteve ali, sempre estaria ali, e nunca mais voltaria para casa, para ela. Olhou a puta, parecia triste e cansada, o charme de sua decadência: as esquinas estavam vazias, ele sentia-se vazio. E por mais que procurasse, por todos os lados, estava sozinho, o corpo pesado de tédio, a alma encharcada de chuva e solidão.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Quando o jornalismo vai além da profissão!



No sacolejo do ônibus minha respiração parou nas primeiras linhas. A autora, Eliane Brum, nos apresenta à vida em “A Floresta das Parteiras” e nos conduz a histórias marcadas pela humanidade na forma como a repórter especial da revista Época conta cada uma delas. São dez grandes reportagens, narradas sob o olhar que mergulha na realidade dos outros. Um olhar desprovido de preconceitos, estereótipos, dessa gaúcha que se entrega com intensidade em todas as suas aventuras. Sim, porque Eliane acorda todos os dias torcendo para viver uma aventura. " Se não será só mais um dia como outro qualquer", diz.

Dormi com o livro - simplesmente não conseguia parar de ler, mas fui vencida pelo sono - na tentativa de absorver o que ainda não tinha assimilado. Tive efeitos colaterais. Dores no corpo, dor de cabeça, nos olhos, enjoo, fora a sensação de euforia, tristeza, desespero, sufocamento, esperança.

“O Olho da Rua – Uma repórter em busca da literatura da vida real” é uma leitura que transforma. Eu saio transformada, renovada, com forças para acreditar que apesar de todas as dificuldades e amarras do jornalismo contemporâneo, quando há paixão nada nos impede de ao menos querer fazer o melhor. Sempre!



Belém(PA). Eliane Brum esteve Belém, no último dia 7 de abril, para ministrar a oficina "Em Busca da Personagem: Um Olhar Singular", através do projeto "Rumos Itaú Cultural". No auditório do Instituto de Artes do Pará (IAP), Brum encantou a plateia de 40 pessoas, entre estudantes e profissionais da comunicação com suas palavras, em especial, aquelas pelas quais mais se destaca: a escrita.

Eliane concedeu uma entrevista para o blog, que você poderá ler aqui, na próxima semana. Até lá!

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Curiosidade

Um amigo me pergunta pelo msn: O que achas do Antônio Fagundes?

Respondo: Bom ator, além de ser morto de charmoso(sofro do Complexo de Electra e adoro homens mais velhos), por quê?

Amigo: Beleza..e o Paulo Goulart?

(Começo a ficar ainda mais curiosa com as perguntas)

Yorranna: Não gosto da dicção dele, mas por quê?

Amigo: Não posso falar...e do Tony Ramos?

Yorranna: Aiaiai, me diz logo ou não te respondo nada, pq?

Amigo: Não contei nem pra minha mãe...não posso, é sério!

Yorranna:Então, não respondo!

Amigo: Fala logo, deixa de ser curiosa?

Yorranna: Impossível, faz parte de mim!!!!Você quer me matar de curiosidade?

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É pessoas, a conversa seguiu nesse curso e meu amigo tinhoso nada de me relevar o mistério, justo comigo fazer uma coisa dessas...Nós jornalistas, simplesmente, odiamos quando não nos matam a curiosidade.Mas ainda continuo a minha saga em busca deste segredo. Quando terminar este post, vou correndo perguntar!!!!