Da jornalista Eliane Brum
Era um daqueles almoços que não dava para dizer não, mas dizer sim causava insônia na noite anterior. Sentou-se. Bem no meio, para que as conversas passassem por ele, e ele não passasse por elas. No canto, quem não fala chama atenção. No meio, com sorte dá para virar uma travessa de brócolis. Seu corpo, pelo menos, parece participativo. Está lá, todo exposto e supostamente atento. Sorriu seu melhor sorriso sem dentes. E atacou um salmão apenas selado, cru e tenro por dentro. Ah, um salmão faz um ateu acreditar em Deus. Mas só porque ele não é um salmão. Do ponto de vista do salmão, ser tão saboroso ao paladar do animal no topo da cadeia alimentar era, ao contrário, uma prova da não existência de Deus. Hum…
Estava neste ponto, entre divagações teológicas e uma garfada crocante, quando ouviu. Não havia como não ouvir. O clichê passou zunindo pela sua orelha esquerda. Não! Ele não disse isso! Disse. Um gole redentor de vinho. E zuuuuum, o clichê da réplica raspou em sua orelha direita. Não, isso não aconteceu. Nem mesmo ela poderia ter dito isto a sério. Aconteceu.
E então a clichelândia se instalou. Os lugares-comuns passavam de peito aberto pelas suas orelhas, se achando a última cereja do bolo. Ops! Estava sendo contaminado. Jargões aterrissavam entre os cristais da dona da casa com alarde. Não estou ouvindo, não estou ouvindo. Estava. Recitou mentalmente os primeiros cantos da Ilíada, mas os clichês se imiscuíam entre os versos. Partiu para uma solução radical e repetiu para si mesmo a bula do seu antidepressivo. Não adiantou. Clichês são criaturas inconvenientes. E tão resistentes quanto as baratas.
Nesta hora se distraiu. Abriu a boca, ainda com um resto de salmão nos molares inferiores. Não era possível. Não este. Ninguém poderia dizer este e permanecer impune. Batia 10 na escala Richter dos lugares-comuns e frases feitas, segundo o dicionário do Humberto Werneck. E então, zuuuuum, plaft, ploft. O clichê entrou pela sua boca aberta. Na hora, achou que era uma mosca. Engasgou e babou-se de vinho, calando pela primeira vez a clichelândia.
Se soubesse que era tão fácil, tinha tido um acesso de tosse antes. Seu vizinho na mesa bateu forte em suas costas. Desgraçado. Devia estar se vingando de uma crítica ruim. Babou mais um pouco. Sim, era ele. Colado no céu da boca. Passou uma língua sinuosa por lá. Coladíssimo. Forçou, num rastreamento completo. Nesta altura, já tinha perdido parte da compostura. Nada. Ele parecia ter nascido ali.
Pediu licença e foi ao banheiro, sentindo os comentários maldosos se iniciarem às suas costas. Enfiou o indicador na boca. Ia arrancá-lo dali à unha. Sangrou, mas o clichê continuou grudado. Voltou à mesa. Sorrateiro, botou uma faca no bolso. Voltou ao banheiro. Agora nem esperavam que se afastasse para o maldizerem. Mais sangue. E o clichê lá, misturando-se à sua carne. Outro cliente entrou pelo banheiro e deu meia-volta ao vê-lo escarafunchando a boca com uma faca de peixe. Era melhor ir embora, antes que o levassem preso.
Finalmente em casa, tentou tudo, até a chave de roda do carro. Já nem podia comer nada sólido, tão machucada estava sua gengiva. Mas o clichê seguia impávido. Parecia que tinha posto raízes no céu agora crepuscular da sua boca. Foi ao dentista. Doutor, pelo amor de Deus, tira este negócio daqui. O dentista arrancou um siso incluso, mas do clichê nem um gemido.
Foi possuído pelo medo. E se falasse e o clichê saísse de sua boca de repente? No meio de uma palestra. Numa conversa com seu editor sobre a relação entre a literatura inglesa contemporânea e a baixa taxa de fertilidade dos pandas. Estaria acabado. Um clichê desses aniquilaria uma reputação por pelo menos umas dez vidas. Toda uma existência de estudo e de sacrifícios inenarráveis em nome do conhecimento e, de repente, seu nome jogado na cloaca dos lugares-comuns. Ninguém acreditaria que o clichê não era seu. Afinal, estava ali, dentro da sua boca.
Decidiu que nunca mais pronunciaria palavra alguma.
Os amigos alarmaram-se. Ele sempre havia sido silencioso, mas agora emudecera. A faxineira pediu demissão. Achava que tinha sido possuído por um exu. Foi numa igreja evangélica, disfarçado de homem do saco. O pastor gritava e lhe dava tapas: Saia, que este corpo não te pertence! Um séquito de belzebus o deixou, mas o clichê nem aí.
Fechou a boca em definitivo.
Começou a definhar. Não comia, não bebia, a pele já se descolava dos ossos. E o clichê lá. Reluzente. A única parte em perfeito estado de saúde do seu corpo. A irmã com quem não falava havia anos, desde que ela jogara no lixo sua coleção de times de futebol de botão, foi chamada. Arrastou-o por uma fileira de especialistas. Submeteram-no a uma batelada de exames de sangue e ressonâncias magnéticas. Nada. Os incompetentes não enxergavam o clichê.
Depois de três meses, morreu. Ao exalar seu último suspiro, rodeado por expoentes das letras do seu tempo, já sem domínio dos músculos, abriu a boca. E o clichê partiu, saltitante, deixando atrás de si um homem morto e um rastro de destruição.
Suas últimas palavras.
E o velório ficou às moscas.
Por piedade, os jornais preferiram nem publicar um obituário.
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