Yorranna Oliveira

Achei a imagem aí de cima pesquisando no Google. E ela define perfeitamente um pouco do que eu sou e da proposta do blog: tem de tudo um pouco, e um pouco de quase tudo o que gosto. Aqui você vai encontrar sempre um papo sobre música, cinema, comunicação, literatura, jornalismo, meio ambiente, tecnologia e qualquer outra coisa capaz de me despertar algo e a vontade de compartilhar com vocês. Entrem e divirtam-se!

terça-feira, 30 de junho de 2009

Movimento dos Barcos (Canção de Jards Macalé)

“Tô cansado e você também. Vou sair sem abrir a porta...”. Jards Macalé, minha nova grande paixão musical, me inspira a escrever este texto, este relato, que não passa de um desabafo pra desafogar minhas dores e minhas tristezas.

Sabe, eu queria vencer esse cansaço, essa angústia infinita que se apoderou de mim.
Você entrou. Não pediu licença. Penetrou minha vida, minhas entranhas. Te quero fora de mim. Te quero longe, distante, num passado que te enterre e não retorne mais.

Eu cansei. Você cansou. Todos nós cansamos das dores, tristezas e alegrias compartilhadas. Cansamos desse ciclo de paixões incompletas, de amores não vividos por inteiro.

As quatro paredes também cansaram de ver meu amor sufocado.

A água do chuveiro roubou todas as minhas lágrimas. No chão, as gotas doces e amargas já não se distinguem mais.

Quero sair sem abrir a porta. Não olhar pra trás. Deixar o carinho, o amor, o sexo, o ódio, a dor, todos os nossos sentimentos trancados num tempo pretérito. Sair sem abrir a porta para você não me acompanhar.

Por isso eu te suplico: me deixe descansar, não me condene à prisão. Devolva minha vida, não me aprisione a você. Deixe-me ir. Liberte-me, liberte-me!

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Por que assistir a uma comédia romântica?

E brasileira? No texto abaixo, você terá bons motivos.

A Mulher Invisível


Marcelo Forlani

Desilusões amorosas são o combustível da alma humana. Não fossem os pés-nas-bundas e as paixões não correspondidas, a música, a poesia, a pintura, o cinema não teriam a mesma beleza dolorida que têm. Se, por um lado, cada fora é encarado de uma forma diferente - tem quem coma caixas inteiras de chocolate e tem também os que ficam dias sem apetite - há sempre uma constante: a cola usada para grudar os cacos do coração partido é uma nova paixão. Autodestrutivo esse tal de ser humano.

EmA Mulher Invisível (2009), quando conhecemos Pedro (Selton Mello) ele está irradiantemente apaixonado, certo de que tem ao seu lado a mulher de sua vida (Maria Luiza Mendonça)... até descobrir que ela está grávida de gêmeos e o pai não é ele. A depressão que vem com a descoberta só começa a melhorar quando, certo dia, uma loira, linda e solitária mulher bate à sua porta pedindo uma xícara de açúcar. É a sua nova vizinha, Amanda (Luana Piovani), por quem ele se apaixona em questão de nanosegundos, principalmente depois de descobrir que ela faz faxina na sua casa só de calcinha e soutien, prepara o jantar e o serve na sua boca, adora fazer sexo, curte futebol até da terceira divisão e não liga quando ele sai com os amigos.

Sim, Luana Piovani interpreta a mulher perfeita. Na verdade, quase perfeita, pois ela só existe na cabeça do Pedro. Para todas as outras pessoas ela é uma mulher invisível. Sabendo que se trata de uma comédia romântica, é de se imaginar que toda a trama já está resolvida desde o seu título: depois de sofrer com o fora que levou da ex, Pedro conhece a mulher ideal, se apaixona novamente e no fim descobre que ela não existe, mas volta a se apaixonar.

E é aí que o filme ganha pontos. Sem escapar do happy end, o diretor Cláudio Torres, que co-roteirizou o filme ao lado de Adriana Falcão, Cláudio Paiva e Maria Luísa Mendonça, consegue criar formas de fugir do lugar-comum. Digamos que em vez de ir pelo atalho, ele pega aquela estradinha cheia de curvas, mas com um visual mais bonito e, por que não, romântico.

As participações de Vladimir Brichta e Maria Manoella, respectivamente como o melhor amigo (Carlos) e a vizinha (Vitória) que é apaixonada por Pedro, vão além dos papéis coadjuvantes normais. Eles não são apenas os personagens que dão dicas (muitas vezes furadas) do que fazer. O desenvolvimento da história depende deles. E tem ainda a Fernanda Torres, que rouba a cena quando aparece dando dicas a Vitória, sua irmã.

Autodestrutivo, sim, o ser humano. Mas, acima de tudo, esperançoso e apaixonado. Sempre aguardando pelo príncipe encantado ou a donzela adormecida. É por isso que as comédias românticas vão tão bem nas bilheterias. Trata-se de um típico programa a dois, que segue ou antecede um jantar e algo mais. E melhor ainda quando a história consegue fugir um pouco da fórmula. Agora só falta você ir ao cinema e ser feliz para sempre. Pelo menos até o próximo pé-na-bunda.

terça-feira, 23 de junho de 2009

A Bela da Tarde

Luís Alberto Rocha Melo

Séverine, a Belle de Jour, sonha com os olhos abertos. No entanto, caminha pelas ruas com óculos escuros, como a persistir nos sonhos e em uma noite interior. Quando fixa o olhar em algum ponto, o que vê não é necessariamente o que está diante de seus olhos. Há, neste modo particular de ver, uma espécie de cegueira iluminada que nasce da maneira como a personagem vivida por Catherine Deneuve se deixa penetrar pelas imagens. Conscientemente ou não, Séverine descansa o olhar naquilo que está oculto, ou excessivamente aparente: os objetos, as pessoas, as ruas, os parques e o quarto no qual se prostitui falam de outro modo para ela. E para nós, espectadores, é quase mesmo impossível delimitar, sem reduzir, o que são as "imagens reais" e o que são as "imagens criadas" pela imaginação fértil (ou super-receptiva?) de Séverine. Já não há fronteiras, nem mesmo universos paralelos: o cinema é o espaço da desarticulação total do que é "subjetividade" e "realidade concreta". Em Bela da Tarde tudo é movimento, e o que interessa - como num bom filme de ação - é acompanhar os deslocamentos dos personagens (e da câmera que os segue).

Bela da Tarde (1967) é possivelmente o filme mais conhecido de Luis Buñuel. Pertence à fase madura de sua obra, que compreende títulos como Viridiana (1961), O Anjo Exterminador (1962), Diário de Uma Camareira (1964), Simão do Deserto (1965), Tristana (1970), O Discreto Charme da Burguesia (1972), O Fantasma da Liberdade (1974) e Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977). Pertence, portanto, a uma fase na qual se cristalizou um certo "estilo buñueliano", bastante diverso da primeira fase surrealista (Um Cão Andaluz, L'Age D'Or) e dos filmes realizados no México, durante a década de 1950. E poderíamos falar aqui em "estilo buñueliano" como se fala em um estilo "hitchcockiano", ou seja, como uma "marca registrada", o que inclui certo apelo à cumplicidade do espectador, que já sabe o que esperar - ou melhor, no caso de Buñuel, o que não esperar - do filme que irá assistir. A Bela da Tarde, aliás, não deixa de ser um "filme de mistério" (já que mencionamos Hitchcock). O suspense, porém, é de outra ordem: o que nos inquieta não é a fatalidade trágica, mas o acaso. O fio narrativo, de ressonância melodramática, é inteiramente subvertido pela forma como Buñuel sublinha o gesto concreto quando tudo é fantástico; abrir e fechar uma porta ou andar pela rua são atos igualmente carregados de absurdo.

Com a fluidez de um filme de gênero (mistério? melodrama?) e a ambigüidade característica de Buñuel, Bela da Tarde é sobretudo ritmo. Eliminando por completo a música de fundo, o filme se torna ainda mais musical, numa perspectiva próxima a de Robert Bresson, por exemplo. O som, os ruídos, realistas ou não, são sempre elementos que sublinham musicalmente as ações: passos que ecoam em um corredor ou sussurram em tapetes; os sinos de uma igreja ao longe; os cincerros das vacas, os guizos de uma carruagem, os cascos dos cavalos, o miar de um gato, os sons de uma buzina e o ruído dos automóveis. Buñuel se atém ao universo aparente do sensível: a mise-en-scène requer apenas a eficiência do gesto e do enquadramento. O corte não apenas nos faz sair de um lugar (espaço físico) para outro, mas nos transporta para percepções diferentes. Acompanhando a trajetória de Séverine, experimentamos o que é viver com a sensação permanente de uma suspensão temporal.

Filmando desta forma, Buñuel evita o que poderia fazer de A Bela da Tarde um péssimo filme: a construção moralista de personagens psicologizados. De fato, as motivações que levam Séverine a se prostituir (imaginariamente ou não) importam tanto quanto o conteúdo da misteriosa caixinha que o "cliente asiático" leva ao bordel de Anais. Buñuel não se interessa pelo "drama burguês". Prefere filmar os burgueses debatendo-se em seus dramas, da forma mais exterior possível (mesmo que o que vemos represente a subjetividade da protagonista). E é por isto que há tanto humor nos filmes de Buñuel (nem tanto em Bela da Tarde, mas principalmente em trabalhos como Simão do Deserto e O Fantasma da Liberdade). Mais uma vez, o gesto mais comum é tão perverso quanto os mais obscuros fetiches dos clientes do bordel. Pierre (Jean Sorel), o marido de Séverine, e seu sorriso empastelado; Husson (Michel Picolli) e sua polidez sarcástica; todos os tipos que passam pela Belle de Jour - pervertidos ou não - são tão ou mais monstruosos quando aparentam uma pretensa normalidade. O jovem Marcel (Pierre Clementi), o bandido que se apaixona por Séverine, é talvez o único personagem que escapa da galeria dos hipócritas - mas a ele é conferido um destino apropriado aos "personagens de exceção"...

Resolvendo trabalhar pela primeira vez na vida, Séverine decide optar pela mais antiga das profissões. Seu nome de guerra, Bela da Tarde, não somente indica a sua beleza, mas seu horário de trabalho, e a este horário Séverine agarra-se como a única bóia de salvação. Com um nome de guerra, ela termina por nomear seu próprio cotidiano. Mas não é a intenção de Buñuel nos guiar através do "dia-a-dia" de uma "mulher em busca de si mesma". Em A Bela da Tarde nenhum personagem merece o "privilégio da identificação" com o espectador, já que todos são filmados com absoluto rigor por uma câmera que os torna fantasmas de realidades múltiplas. Se Séverine se apresenta como um veículo para nos abandonarmos e nos entregarmos ao devaneio, tanto pior para ela: das duas às cinco da tarde, nós também somos donos da Belle de Jour e dela nos afastamos assim que soam as seis horas e ela se torna Séverine, a mulher frígida de Pierre. Ou melhor: é então que voltamos a observá-la enquanto ela vive seus sonhos ou pesadelos. De olhos bem abertos, que é, de resto, a maneira de se sonhar no cinema.


- Luís Alberto é crítico de cinema do site Contracampo: www.contracampo.com.br

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Lista da compulsão

Junho foi e está sendo o mês em que simplesmente comprar livros (em sebo e livrarias convencionais)tem me consumido as economias, mas deliciado o prazer de aumentar minha biblioteca personalizada. E claro, meu conhecimento literário.

Segue abaixo uma lista dos livros que passarei as férias lendo(já comecei alguns deles). Comprei todos graças ao salário de meu último estágio em Assessoria de Comunicação(eu tinha esquecido de receber, hehehe, pode?!).

A aventura da reportagem (Ricardo Kotscho e Gilberto Dimenstein)
A Romana (Alberto Moravia)
A insutentável leveza do ser (Milan Kundera)
A arte e ciência de roubar galinha (João Ubaldo Ribeiro)
Blecaute (Marcelo Rubens Paiva)
Fragmentos (Caio Fernado Abreu)
O heroi devolvido (Marcelo Mirisola)
Na sala com Danuza (Danuza Leão)
Não és tu Brasil (Marcelo Rubens Paiva)
Poesia Reunida (Martha Medeiros)
Quem matou Palomino Molero? (Mario Vargas Llosa)
Trem-Bala (Martha Medeiros)
Um sol para cada um (Edyr Augusto Proença)
28 minutos no inferno

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Corpos sem defesas. Vidas de luta

Texto: Yorranna Oliveira
Fotos: Gleidosn Gomes e Arquivo Pessoal das entrevistadas.

Era um fim de tarde. Paula entrou primeiro no quartinho da pensão. Saiu uma hora depois. Em seguida, foi Cristina. Depois outras duas meninas e por último Raíssa. Todas tinham o mesmo desejo: ter o corpo mais feminino. As cinco fizeram uma aplicação clandestina de silicone. Elas compartilhavam sonhos e histórias muito parecidos. Eram travestis, pobres, prostitutas, saídas do Norte e Nordeste do país, vivendo ilusões em São Paulo. Naquela tarde de 1994, as cinco também compartilharam a seringa usada na aplicação. O sangue de uma penetrou no corpo das outras. A doença de uma nos destinos de todas. Paula morreu uma semana depois. Ela tinha Aids.

“No início pensei que era o fim do mundo. Aí, depois do pior, eu parei pra pensar e vi que a vida continuava”, diz Raíssa Mota do Nascimento, 33 anos, portadora do vírus HIV e há 16 anos vivendo com Aids.

Raíssa nasceu Raimundo Nonato, em Belém do Pará. Aos três meses de idade a mãe biológica foi presa por tráfico de drogas e Raimundo passou a ser criado por dona Teresinha, vizinha da vila onde moravam no bairro de Fátima. A criança cresceu e lá pelos cinco, seis anos o menino não queria jogar futebol, vestir cueca. Ele queria brincar de boneca, elástico, usar saia, deixar o cabelo crescer. Raimundo foi se descobrindo e aos 11 anos revelou a verdade daquele corpo masculino por fora e feminino na essência. Dona Teresinha aceitou.

“No início pensei que era o fim. Aí, eu vi que a vida continuava”, Raíssa Mota.


Com apoio da mãe, Raíssa foi para São Paulo em 1993. Dona Teresinha deixou as portas do lar abertas, caso a filha quisesse voltar. Em junho daquele ano, a jovem embarcava de carona num caminhão na BR – 316. Sem dinheiro, ela partiu apenas com uma mochila. Dentro dela, produtos de higiene, três vestidos, uma bermuda jeans, uma sandália e a libertação. “Fui só com a cara e a coragem. Queria sair da prisão em que vivia. Queria fazer show. Sempre gostei de dançar. Queria ganhar dinheiro, botar silicone, ficar mais feminina e ajudar a minha família”.


Raíssa(centro)num congresso em Brasília.

Três dias e três noites sem dormir até chegar em São Paulo. Quando desembarcou à noite na cidade em plena Marginal Pinheiros, Raíssa foi levada para a delegacia junto a outras travestis. Lá, passou a noite e conheceu outras, uma inclusive tinha sido vizinha de bairro. Na manhã seguinte, Raíssa começava uma nova vida. E vender o corpo fazia parte dela. “Em São Paulo, a travesti não tem voz e a única forma era se prostituir. Igual aqui em Belém. Aqui ainda é assim”.

A doença

Em 94, Raíssa ganhou de um cliente 800 dólares para realizar o sonho de colocar silicone. “Ele saiu comigo, pensava que eu era mulher. Mas na hora viu que não. Aí contei minha história pra ele, e ele tirou o dinheiro da carteira e me deu. Fui pra casa e a cafetina disse que eram dólares. Eu pensei que era dinheiro de mentira, porque nunca tinha visto aquele tipo de dinheiro”, lembra.

Ela comprou dois litros de silicone de algas marinhas. A própria cafetina foi quem fez o procedimento. A morte de Paula e a descoberta da doença alardearam Raíssa. “Naquela época a mídia divulgava mais que se pegava Aids por relação sexual. Estava ainda a história do Cazuza e tudo. Fui fazer o teste, mas eu já sabia. O primeiro, o segundo e o terceiro deram negativo. O médico me perguntou porque eu tinha feito tantos testes e expliquei. Ele me disse que com a experiência como infectologista provavelmente eu tinha Aids, mas deveria voltar com seis meses, porque nada seria detectado devido à janela imunológica (quando o exame não detecta o vírus)”, conta.

Seis meses depois, o resultado foi positivo. Raíssa já vivia as voltas com drogas, bebidas e noitadas, a nova realidade aflorou os excessos. “Eu me joguei nas drogas e me aprofundei. Experimentava todos os dias. Passava três, quatro noites sem dormir, só usando crack. Esqueci família, compromissos, tudo”.

Raíssa foi presa, acusada de assalto. Passou um ano e seis meses no Carandiru. Com a liberdade, estava decidida a mudar sua história. Parar de usar drogas, acabar com a vida desregrada. Em 1996 voltou para Belém, ainda chegou a se prostituir por um mês, até conhecer os movimentos em defesa dos homossexuais e parou, ainda em 96. E desde 97, ela anda pelos principais pontos de prostituição de Belém, como a avenida Almirante Barroso e a travessa Piedade, distribuindo camisinhas, alertando sobre os perigos das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e a importância da prevenção.

Tratamento

Há 16 anos Raíssa convive com o universo da Aids. Toma 30 comprimidos diariamente. Quinze quando acorda, entre eles os específicos para combater o vírus, o anticoncepcional para deixar o corpo feminino, o para controlar a epilepsia. E os da toxoplasmose - uma das muitas doenças oportunistas que se aproveitam do frágil sistema de defesa dos portadores de HIV e desenvolvem a síndrome.

Raíssa teve 16 internações em decorrência dessas doenças. Para quem tem Aids, o pior são as doenças oportunistas. Elas podem matar tanto quanto o preconceito, seja ele velado ou escancarado. “Nunca sofri preconceito, nunca percebi. Mas sei que ele existe e sempre vai existir”, avalia.

Doze horas depois, ela toma outros 15 comprimidos. Vai uma vez por mês ao médico verificar o estado de saúde. Porque sabe: mesmo sentido-se bem, ela não está curada. “No início a maior dificuldade são as quantidades de remédios, com o tempo a gente se acostuma. É como se tivesse tomando um remédio pra gripe”, compara.

Os efeitos colaterais acompanham desde o início. O cabelo caiu. Raíssa ganhou peso. Dos 68 quilos ideais passou para 75, depois recuperou a forma, graças à dança e à quadra junina, quando Raíssa fica completamente envolvida com a quadrilha Ídolos Juninos, do bairro de Fátima. Ela sai de Miss Caipira da quadrilha e participa das competições promovidas na cidade.

Ela não para. Vive viajando e andado de um canto a outro, tanto da cidade como do país. Congressos, encontros, cursos voltados para os direitos dos travestis e das pessoas vivendo com HIV/Aids. Ela dança, faz rifa de leite Ninho para complementar o amparo social que recebe. Estuda o primeiro e o segundo ano na escola estadual Deodoro de Mendonça e todas as quintas, sextas e sábados percorre as ruas de Belém fazendo campanha de prevenção de DST. Uma vida como a de qualquer pessoa.

Raíssa chora, ri, namora. Arruma-se, cuida do cabelo, das unhas, do corpo, passeia, faz amor com camisinha. Dubla Elza Soares. “Acho ela legal, gosto do estilo dela”. Não abre mão de comer bem. Adora frango assado, tacacá, lasanha com uma Coca-Cola bem gelada. “Eu posso não ter saúde, mas eu tenho vida”. E o que Raíssa mais faz é viver.

“Ela é um misto dentro de uma inconstância. Ela é a Raíssa humilde, guerreira, da periferia, conhecida por todos no bairro e em Belém pela militância dela. É a quadrilheira, carnavalesca, social, representante de movimento. A unidade dentro da diversidade. Com ela não tem tempo ruim”, descreve Augusto, amigo, vizinho e presidente da quadrilha Ídolos Juninos.

Desejos


Descansando com a amiga, Cris, durante congresso em Brasília.


Raíssa quer colocar prótese de silicone. Dessa vez, seguindo os procedimentos corretos, numa clínica especializada, bem longe da clandestinade.

Alimenta a vontade de contar suas histórias de tristezas e alegrias num livro. Já tem até o título da obra: “A vida de uma travesti como ela é”. Com o livro, ela espera mostrar os dois lados das escolhas que fez. “Eu não me arrependo de nada, mas procurei mudar, seguir outros caminhos e fazer diferente as coisas”, ressalta.

Ela pretende legalizar a Associação de Travestis e Transexuais do Pará (Astrap), da qual é presidente. Assim, acredita que a classe poderá lutar com mais garra por seus direitos. “Se os negros e as mulheres têm hoje suas leis é porque se articularam”. Esse mesmo espírito de união e força, Raíssa leva para o Grupo Homossexual do Pará (GHP) e para a Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/AIDS (RNP+). Duas entidades paraenses na defesa dos direitos humanos de quem vive com HIV/AIDS.

“Eu posso não ter saúde, mas eu tenho vida”, Raíssa.


A descoberta da cura não é um desejo, muito menos sonho. Raíssa tem certeza da existência dela. No entanto, a indústria da Aids fatura muito mais com a venda de remédios e todo mercado em torno da doença. “Ela já existe, e está aqui na Amazônia”, afirma.

Raíssa não se importa, ela é feliz de qualquer forma. Claro, se pudesse voltar no tempo, jamais teria se infectado. Mas aconteceu, e convive com isso. “Aceito, porque a Aids é uma doença que não tem cura, mas tem tratamento. O negócio é ter cabeça erguida e terminar de jogar a partida, porque isso não deixa de ser uma partida de futebol”.

Mulher, mãe, soropositivo

Se Raíssa sabe exatamente como, quando e quem lhe transmitiu o vírus, essa é uma certeza que Maria Elias Silveira não tem. Aos 31 anos, há dez ela vive com HIV/AIDS e já se passaram cinco anos tomando medicação. “Não sei quem foi que me passou. Não conheço nenhum namorado ou ex-marido morto por Aids. Os pais dos meus filhos morreram de outras causas”.

Maria Elias tem dois filhos: Paulo Sérgio, 17; e Mayran Taleesa, 13 anos e um ex-marido chamado Flávio, 26. E ela faz questão de dizer. “Nenhum deles tem Aids”.

A história de Maria Elias com Flávio parece saída de um conto de fadas. Eles se conheceram, se apaixonaram, se amaram. Ela com 26. Ele com 19. Flávio queria transar sem camisa, mesmo sabendo a verdade. Queria ter um filho com May - como gosta de ser chamada. May não queria. “Sou contra mulheres soropositivo tendo filhos. Não sei quanto tempo vou ficar do lado deles. E para ter um filho iria infectá-lo. Não seria justo”, analisa.

Brigas seguiram – se durante os sete anos de união por conta disso. E foram inflamadas pela dedicação intensa de Maria Elias à luta contra a Aids. “Ele me perguntava porque me doava tanto, dizia que não ia adiantar. Mas eu gosto, eu quero. Se não tiver ninguém trabalhando, fazendo barulho as coisas não saem. Essa militância vai fortalecer isso. A cura pode não vir pra mim, mas virá para outras pessoas. Onde tiver espaço para estar falando de Aids, lá eu estou”, destaca.


Marias Elias. Militância constante na luta contra a Aids.



Mas quando May, em 2006, ficou dois meses internada para tratar de uma tuberculose ganglionar, Flávio estava lá. “É um amor que é surreal, a gente quase não vê isso. Ele era louco pra ter um filho. Mas como vou poder contar minha história bonita se eu infectasse uma pessoa?!”, indaga.

Há cinco meses, cada um seguiu destinos opostos. Eles moram lado a lado na passagem Santa Paz, no bairro da Cabanagem e não se falam. Ela mora numa casa humilde de dois cômodos, sem reboco nas paredes, sem forro no teto. Vive com os filhos, cachorros e gatos, mesmo não podendo ter animais em casa. “Minha filha adora bicho”, explica. Flávio mora na casa ao lado com a mãe. E o casal separado ainda se ama.

A Aids e os outros


Maria Elias era jovem, muito jovem quando uma folha de papel lhe sentenciou não à morte, mas à vida sem saúde. Ela tinha 21 anos e muitos projetos. Saiu de casa aos 12anos, foi mãe pela primeira vez aos 13, pela segunda vez aos 17. Tudo sempre muito cedo na existência de Maria. Porém, não se entregou e nem quis virar coitada, doente, pobrezinha, desenganada. Ela exibiu força, vontade e coragem. Virou militante da causa, coordenadora de ONG, mulher de fibra, leitora assídua, incansável.

“Pra uma coisa que tu não conheces bem, tudo é estranho. A gente vive à base de droga. Eu não tenho apetite, tenho efeito sanfona, tem as doenças oportunistas, essas coisas assustam. Mas comecei a ler, a me informar. Não fiquei frustrada, só procurei lidar com essa situação e buscar qualidade de vida”.

Buscar qualidade de vida é a luta diária de quem vive com HIV/Aids. Sem ela, as doenças oportunistas destroem o equilíbrio vital dos pacientes e os condenam ao sofrimento. Maria já teve viroses, infecção intestinal, em quase todas parou no hospital. “Uma hora você está bem, outra não. Pra um soropositivo uma gripe é um fiasco, uma tosse é um fiasco. A medicação pra Aids é gratuita, a das doenças oportunistas você precisa comprar, e nem sempre esses remédios existem na farmácia popular. Tenho uma medicação que custa 180 reais, pra alguém com um salário mínimo, que vive de artesanato e tem dois filhos pra criar, esse dinheiro faz muita falta”, desabafa.


As drogas diárias de Maria Elias


Quando a família do marido soube da doença, foi aquela preocupação. May, de cabeça erguida, pediu para Flávio fazer o teste de HIV. Como esperado, deu negativo e Maria Elias fez questão de mostrar o resultado para a família inteira.

“Eu sempre dizia que tinha Aids e muitos [parceiros, namorados] iam embora, sumiam, desapareciam”, Maria Elias.

São as várias facetas do preconceito, demonstradas não em frases declaradas, mas em atitudes camufladas. Discriminar, xingar, evitar, calar. Cada ser humano tem uma forma de revelar sua própria ignorância. “É uma faca de dois gumes. De certa forma eu levo uma vida normal. Quando toda minha família sabe e não me discrimina. Não é normal quando você se depara com pessoas que por falta de conhecimento ou sei lá o quê, numa briga, ou em outro momento, solta algo que você não quer ouvir, mexendo na ferida”.

Maria Elias já perdeu a conta dos relacionamentos interrompidos ou nem sequer iniciados. “Eu sempre dizia que tinha Aids e muitos iam embora, sumiam, desapareciam”.

Elias não ecoa para Deus e o mundo o fato de ser portadora de HIV. Não interessa aos outros, somente à família e aos amigos. Contudo, a cautela tem um sentido mais profundo. “Eu vivo de artesanato, de fazer unha decorada. Quem vai comprar um objeto feito por mim? A pessoa vai logo pensar que eu posso ter me ferido e caiu sangue ali. Fazer a unha, então!”.

Sonhos

A mãe, mulher, militante planeja o futuro. Almeja conquistas, deseja realizações. Fazer faculdade de Serviço Social é um desses desejos. “Quando a gente vive na soropositividade, a gente sabe perfeitamente como tudo funciona. Quero trabalhar com os companheiros soropositivos. Percebo que a maioria dos assistentes sociais atrapalha a vida da gente, quando deveriam ajudar. Não estão preparados para trabalhar com pessoas nessa condição”, critica.

Assim como Raíssa, ela acredita numa cura já encontrada, mas não divulgada. “Eu sei que já existe, mas ninguém vai dar uma cura, quando se pode lucrar tanto com a venda de remédios. É o capitalismo. É preciso aparecer uma doença pior do que a Aids pra cura surgir”, opina.

Maria Elias sonha com algo mais palpável. Podem lhe tirar tudo, menos os sonhos, porque, como diz Zuenir Ventura ‘só não podemos perder a capacidade de sonhar’. E ver os filhos crescerem é um deles. “Quero viver bastante para vê-los maiores”, diz.

terça-feira, 16 de junho de 2009

As razões que o amor desconhece

Martha Medeiros

Você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes do Ettore Escola, dos irmãos Coen e Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem o seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettuccine al pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desses, criatura, por que diabo está sem namorado?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente= dois apaixonados.

Não funciona assim. Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não-fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo à porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar. Costuma ser despertado mais pelas flechas do Cupido do que por uma ficha limpa.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai ligar e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário, ele só escuta Egberto Gismonti e Sivuca. Não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado, e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita de boca, adora animais e escreve poemas. Por que você esse cara? Não pergunte pra mim.

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas e ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco, você levou-a para conhecer sua mãe ela foi de blusa transparente. Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina o Natal e ela detesta o Ano-Novo, nem no ódio vocês combinam. Então? Então que ela tem um jeito de sorrir que te deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar você. Isso tem nome.

Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referências. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas, bons pais de família, tem assim, ó. Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é.

Sobre Martha Medeiros http://www.releituras.com/mamedeiros_menu.asp

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Leituras

Ando com uma preguiça incrível de comentar, resenhar, criticar os livros que tenho lido. Mas me sinto culpadíssima por, no mínino, não destacar trechos de obras que valem a leitura. É o caso de Trem-Bala, da Martha Medeiros. Lançado em 1999, o título reúne uma série de textos sobre as reflexões da autora em relação à vida. "Gosto demais desse título, tem a ver com a velocidade dos dias, a urgência dos nossos desejos. Tive essa ideia de repente, minutos antes de pegar no sono, e quando acordei de manhã escrevi uma crônica chamada Trem-Bala só pra publicá-la no encerramento do livro", explica Martha.

O livro é facilmente encontrável em qualquer livraria ou sebo decentes. Não passa de 20 reais. Um textículo de 1997 como estímulo:

Crônica do Imediato

O tempo divide-se entre o ontem, o hoje e o amanhã. Ontem já foi, e amanhã, vá saber. Dito assim, fica fácil perceber qual das três etapas é a mais importante. O presente, lógico. O passado é importante pela bagagem que você traz de lá e o futuro só é importante no plano da abstração e da fantasia, porque ninguém o alcança: estamos todos presos neste exato momento.

Diante dessa visão simplista, passado e futuro transformam-se apenas em sinalizadores
de calendário, em semântica para designar quem você foi e quem você pretende ser quando crescer. No entanto, são justamente esses dois tempos que monopolizam o planeta.O presente, coitado, não tem armas para combater duas superpotências chamadas Lembrança e Expectativa.

O passado é um álbum de fotografias onde as cenas fora de foco não entram. É a realidade revisada: recordar é esquecer a banalidade dos fatos. Um encontro amoroso, o que é? Duas pessoas que se olham, se tocam, se beijam, discutem, fumam, se beijam de novo, implicam uma com a outra, riem, fazem juras eternas, espirram. Esse encontro, 24 horas depois, será lembrado com mais boa vontade: a fumaça do cigarro, as pequenas implicâncias e os espirros sumirão da memória. Ficarão os beijos, as palavras e os olhares. Foi um encontro mais ou menos agradável, mas será lembrando como mágico. A saudade faz tudo subir de escalão.

Suas férias estão sendo boas, mas chove há três dias, a cabana que você alugou não era bem como o corretor descreveu e você está sentindo falta, não conte para ninguém, do trabalho! Mas ao voltar para casa, a lembrança tratará de aperfeiçoar aqueles 30 dias em Comboriú e você não cansará de dizer que suas férias foram magníficas. Até mesmo dores antigas ganham novo status ao serem recordadas: dor-de-cotovelo vira aprendizado e aquela vontade de se atirar embaixo de um ônibus vira um profundo processo de autoconhecimento. Ter sofrido no passado é sempre didático.

O futuro é outra flor de simpatia. A expectativa veste a todos muito bem, coloca sábias palavras em nossa boca e uma fortuna em nosso bolso. A megasena acumulada que será sorteada daqui a alguns dias, a entrevista de emprego marcada para quinta, o próximo verão em Punta, não sairá tudo como planejamos? Quem dera. A realidade nunca foi páreo para a imaginação.

Fica o presente, então, encurralado entre esses dois períodos emblemáticos, o passado e o futuro, quando na verdade ele é que deveria ser a estrela da festa. O antes e o depois são apenas figuração: durante é que o desejo é real, que as pernas tremem, que o coração dispara, que o abraço ainda está quente. A vida é breve e só existe esse instante. Amanhã um pintor de paredes estará cobrindo o chão com esse jornal e minha crônica servirá de capacho para um tênis sujo de tinta. Tic-tac, tic-tac. O tempo não perdoa.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Jamais perder a essência da vida

Cassy e Marcelo conseguindo viver através da música, e não do racional. Não estou querendo dizer que proponho agora que todos abandonem a fala e comecem a se entender por música (nem acho que a gente deva se alienar de um papel político na sociedade), mas sim que se mantenham relações espirituais com determinadas pessoas em determinados momentos.

Fazer um som com Cassy
Dançar com a Nana
Fazer amor com a Ana
Fofocar com a Gorda
Rir com a Laurinha
Discutir política com a Veroca
Dar uma bola com o Tucum
Jogar futebol com o Maurão
Ir ao cinema com o Richard
Pegar onda com o Bino
Ficar olhando a cara da Virgínia
Descobrir Campinas com o Rubão
Ver televisão com a Biguinha
Ir a uma festa com a Quitinha
Conhecer os amigos da Li
Dar amendoim pros pombos com a Gureti
Escrever cartas pra Cris


Trecho fofo das relações que Marcelo Rubens Paiva escreve em seu livro Feliz Ano Velho. Lançado em 1982, o autor narra sua vida após ficar paralítico. Com sinceridade aguçada, Marcelo conta suas dores, incertezas, paixões e toda a profusão de sentimentos que explodem ao longo de sua adaptação à nova existência.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Nota pública contra o desmonte da política ambiental brasileira

As organizações da sociedade civil abaixo assinadas vêm a público manifestar, durante a semana do meio ambiente, sua extrema preocupação com os rumos da política socioambiental brasileira e afirmar, com pesar, que esta não é uma ocasião para se comemorar. É sim momento de repúdio à tentativa de desmonte do arcabouço legal e administrativo de proteção ao meio ambiente arduamente construído pela sociedade nas últimas décadas. Recentes medidas dos poderes Executivo e Legislativo, já aprovadas ou em processo de aprovação, demonstram claramente que a lógica do crescimento econômico a qualquer custo vem solapando o compromisso político de se construir um modelo de desenvolvimento socialmente justo, ambientalmente adequado e economicamente sustentável.

1. Já em novembro de 2008 o Governo Federal cedeu pela primeira vez à pressão do lobby da insustentabilidade ao modificar o decreto que exigia o cumprimento da legislação florestal (Decreto 6514/08) menos de cinco meses após sua edição.


2. Pouco mais de um mês depois, revogou uma legislação da década de 1990 que protegia as cavernas brasileiras para colocar em seu lugar um decreto que põe em risco a maior parte de nosso patrimônio espeleológico. A justificativa foi que a proteção das cavernas, que são bens públicos, vinha impedindo o desenvolvimento de atividades econômicas como mineração e hidrelétricas.

3. Com a chegada da crise econômica mundial, ao mesmo tempo em que contingenciava grande parte do já decadente orçamento do Ministério do Meio Ambiente (hoje menor do que 1% do orçamento federal), o governo baixava impostos para a produção de veículos automotores. Fazia isso sem qualquer exigência de melhora nos padrões de consumo de combustível ou apoio equivalente ao desenvolvimento do transporte público, indo na contramão da história e contradizendo o anúncio feito meses antes de que nosso País adotaria um plano nacional de redução de emissões de gases de efeito estufa.

4. Em fevereiro deste ano uma das medidas mais graves veio à tona: a MP 458 que, a título de regularizar as posses de pequenos agricultores ocupantes de terras públicas federais na Amazônia, abriu a possibilidade de se legalizar a situação de uma grande quantidade de grileiros, incentivando, assim, o assalto ao patrimônio público, a concentração fundiária e o avanço do desmatamento ilegal. Ontem (03/06) a MP 458 foi aprovada pelo Senado Federal.

5. Enquanto essa medida era discutida - e piorada - na Câmara dos Deputados, uma outra MP (452) trouxe, de contrabando, uma regra que acaba com o licenciamento ambiental para ampliação ou revitalização de rodovias, destruindo um dos principais instrumentos da política ambiental brasileira e feita sob medida para se possibilitar abrir a BR 319 no coração da floresta amazônica, com motivos por motivos político-eleitorais. Essa MP caiu por decurso de prazo, mas a intenção por trás dela é a mesma que guia a crescente politização dos licenciamentos ambientais de grandes obras a cargo do Ibama, cuja diretoria reiteradamente vem desconhecendo os pareceres técnicos que recomendam a não concessão de licenças para determinados empreendimentos.

6. Diante desse clima de desmonte da legislação ambiental, a bancada ruralista do Congresso Nacional, com o apoio explícito do Ministro da Agricultura, se animou a propor a revogação tácita do Código Florestal, pressionando pela diminuição da reserva legal na Amazônia e pela anistia a todas as ocupações ilegais em áreas de preservação permanente. Essa movimentação já gerou o seu primeiro produto: a aprovação do chamado Código Ambiental de Santa Catarina, que diminui a proteção às florestas que preservam os rios e encostas, justamente as que, se estivessem conservadas, poderiam ter evitado parte significativa da catástrofe ocorrida no Vale do Itajaí no final do ano passado.

7. A última medida aprovada nesse sentido foi o Decreto 6848, que, ao estipular um teto para a compensação ambiental de grandes empreendimentos, contraria decisão do Supremo Tribunal Federal, que vincula o pagamento ao grau dos impactos ambientais, e rasga um dos pontos principais da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, assinada pelo País em 1992, e que determina que aquele que causa a degradação deve ser responsável, integralmente, pelos custos sociais dela derivados (princípio do poluidor-pagador). Agora, independentemente do prejuízo imposto à sociedade, o empreendedor não terá que desembolsar mais do que 0,5% do valor da obra, o que desincentiva a adoção de tecnologias mais limpas, porém mais caras.

8. Não fosse pouco, há um ano não são criadas unidades de conservação, e várias propostas de criação, apesar de prontas e justificadas na sua importância ecológica e social, se encontram paralisadas na Casa Civil por supostamente interferirem em futuras obras de infra-estrutura, como é o caso das RESEX Renascer (PA), Montanha-Mangabal (PA), do Baixo Rio Branco-Jauaperi (RR/AM), do Refúgio de Vida Silvestre do Rio Tibagi (PR) e do Refúgio de Vida Silvestre do Rio Pelotas (SC/RS).

Diante de tudo isso, e de outras propostas em gestação, não podemos ficar calados, e muito menos comemorar. Esse conjunto de medidas, se não for revertido, jogará por terra os tênues esforços dos últimos anos para tirar o País do caminho da insustentabilidade e da dilapidação dos recursos naturais em prol de um crescimento econômico ilusório e imediatista, que não considera a necessidade de se manter as bases para que ele possa efetivamente gerar bem-estar e se perpetuar no tempo.

Queremos andar para frente, e não para trás. Há um conjunto de iniciativas importantes, que poderiam efetivamente introduzir a variável ambiental em nosso modelo de desenvolvimento, mas que não recebem a devida prioridade política, seja por parte do Executivo ou do Legislativo federal. Há anos aguarda votação pela Câmara dos Deputados o projeto do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE) Verde, que premia financeiramente os estados que possuam unidades de conservação ou terras indígenas. Nessa mesma fila estão dezenas de outros projetos, como o que institui a possibilidade de incentivo fiscal a projetos ambientais, o que cria o marco legal para as fontes de energia alternativa, o que cria um sistema de pagamento por serviços ambientais, dentre tantos que poderiam fazer a diferença, mas que ficam obscurecidos entre uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e outra. E enquanto o BNDES ainda tem em sua carteira preferencial os tradicionais projetos de grande impacto ambiental, os pequenos projetos sustentáveis não têm a mesma facilidade e os bancos públicos não conseguem implementar sequer uma linha de crédito facilitada para recuperação ambiental em imóveis rurais.

Nesse dia 5 de junho, dia do meio ambiente, convocamos todos os cidadãos brasileiros a refletirem sobre as opções que estão sendo tomadas por nossas autoridades nesse momento, e para se manifestarem veementemente contra o retrocesso na política ambiental e a favor de um desenvolvimento justo e responsável.

Brasil, 04 de junho de 2009.

Assinam:
Amigos da Terra / Amazônia Brasileira
Associação Movimento Ecológico Carijós - AMECA
Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida - APREMAVI
Conservação Internacional Brasil
Fundação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional - FASE
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento -
FBOMS
Fórum das ONGs Ambientalistas do Distrito Federal e Entorno
Greenpeace
Grupo Ambiental da Bahia - GAMBA
Grupo Pau Campeche
Grupo de Trabalho Amazônico - GTA
Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia - IMAZON
Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia - IPAM
Instituto Socioambiental - ISA
Instituto Terra Azul
Mater Natura
Movimento de Olho na Justiça - MOJUS
Rede de ONGs da Mata Atlântica
Sociedade Brasileira de Espeleologia
Via Campesina Brasil
WWF Brasil

Fonte: WWF Brasil

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Enquanto o emprego não vem, eles trabalham


Por Gleidson Gomes e Yorranna Oliveira
Fotos: Gleidson Gomes

José Monteiro, 32, há nove anos repete o mesmo roteiro de trabalho: um subir e descer constante em ônibus. Ele sai da Cidade Nova, onde mora, desce no Entroncamento, compra R$ 5 ou R$ 10 reais em produtos. Sobe em outro ônibus, começa a vender. Desce no Ver-o-Peso, compra mais produto, vende e segue novamente para o Entroncamento. Lá, pega outra condução e volta pra casa. Nesse troca-troca de paradas, ele descansa, come, bebe alguma coisa e segue sua venda. Nos sacolejos do ônibus, José consegue seu sustento.

No mesmo lugar, Silvia dos Santos, 21, tira os R$ 20 ou R$ 30 reais diários que garantem sua sobrevivência e da filha Bianca Carolina, de 3 anos.

José vende pé-de-moleque, balas de gengibre e ice-kiss. Silvia, bombons de chocolate. Os dois são paraenses. Ele de Bragança. Ela de Belém. Juntos, transformam-se em números das estatísticas de trabalho informal que crescem a cada ano no Pará. Silvia e José representam o universo de seis mil ambulantes circulando em Belém. E integram outros dez mil da Região Metropolitana.

Casado, pai de duas meninas, José trabalha todo dia, às vezes, até aos domingos. Começa entre 10h e 11h e termina às 22h ou 23h. Para o vendedor, ser patrão e empregado de si mesmo, tem suas vantagens. Ele faz o próprio horário e todo final de semana bebe sua cervejinha. “Meu vizinho recebe um salário mínimo, mas quando que ele faz isso. Eu ganho R$ 200, R$ 300 reais por semana, enquanto ele leva quase um mês pra conseguir um pouco mais que isso”, diz.

Mas José sabe: o dia que não trabalhar, ele simplesmente não terá dinheiro. E sem dinheiro não tem comida farta dentro de casa. Se ficar doente, não tem auxílio doença. A mulher é dona de casa, as filhas estudam. José garante sozinho a sobrevivência da família. Por isso, ele sempre guarda um pouco do que ganha para qualquer emergência. “É um trabalho desgastante, mas compensador. Chego em casa, dou o dinheiro pra minha esposa, metade ela compra a despesa e outra metade ela guarda. Ninguém compra fiado em casa. Tudo é pago no dinheiro”.

Silvia vende, desde os 18 anos, os bombons produzidos pela mãe, Sebastiana. Por cada um, paga R$ 0,30 centavos e vende a R$ 0,50. Durante a semana, depois da aula, a jovem coloca 200 bombons numa bacia e saí às 18h de sua casa, no bairro do Benguí, para só voltar às 23h. “Nem sempre vendo tudo, mas dá pra sobreviver. Dou parte do dinheiro para minha mãe, pago minhas contas e sustento minha filha. Nunca consigo guardar nada”, explica.


O pai de Silvia sustenta a família como ajudante de pedreiro. Ela e os dois irmãos menores – também ambulantes – ajudam a complementar a renda. Num sistema de empresa familiar, a mãe e duas primas fazem os bombons, revendidos pelos irmãos.

José quer abrir uma poupança ainda este ano. Quer juntar dinheiro para a festa de 15 anos da filha mais nova, Rayane, 9. Ele não passa um único dia sem vender alguma coisa. “Nunca aconteceu de não vender nada. Tem dia que faço 50, 60, às vezes 20 , 30”. Mas, segundo ele, quando começou vendia bem mais. “Naquela época não tinha tanto vendedor, como tem hoje”.

Eles não sabem, mas, possivelmente, terão novos companheiros no mercado informal, além dos cerca de 400 mil da Região Metropolitana de Belém. Somente nos quatro primeiros meses de 2009, o Pará perdeu 13.802 mil postos de trabalho. E em abril, foram 2.143 postos perdidos no Estado. Isso representa uma queda de 0,39% em relação ao mês de março deste ano, quando cerca de 5.600 trabalhadores demitidos. “Vendo bombom porque emprego está muito difícil. Coloquei currículo em lojas, mas nada. Vou vender até conseguir um emprego”, planeja Silvia.

José passou tanto tempo vendendo que nem sabe o que seria se tivesse outro ofício. Se alguém lhe pergunta a respeito, olha para o infinito e pensa. O olhar se enche de vazio. José mergulha para dentro de si mesmo à procura de uma resposta. Os olhos se tornam úmidos nos segundos em que ele faz essa busca. A resposta tem cinco palavras: “Não sei, infelizmente, não sei”.

Com informações do Dieese.