Yorranna Oliveira

Achei a imagem aí de cima pesquisando no Google. E ela define perfeitamente um pouco do que eu sou e da proposta do blog: tem de tudo um pouco, e um pouco de quase tudo o que gosto. Aqui você vai encontrar sempre um papo sobre música, cinema, comunicação, literatura, jornalismo, meio ambiente, tecnologia e qualquer outra coisa capaz de me despertar algo e a vontade de compartilhar com vocês. Entrem e divirtam-se!

quarta-feira, 25 de março de 2009

A música que nasce do rio.

As águas da Baía do Guajará traziam o menino para o ventre da cidade. Acompanhado da mãe, ele desembarcava no Porto do Sal, no bairro da Cidade Velha e seguia pelas ruas de Belém para visitar parentes e amigos ou fazer compras na João Alfredo. Pequenas lembranças dos primeiros contatos, ainda na infância, entre o músico Ivan Cardoso e sua “bela morena”.

O cantor e compositor, de 46 anos, nasceu em Cametá e veio viver nas terras belenenses aos 18 anos. Morou na travessa Humaitá entre Duque de Caxias e Visconde de Inhaúma. Em 1984, um ano depois de sua chegada, se mudou para a Cidade Nova, onde montou com amigos o grupo “Cio da Terra” e tocou no bar mais badalado do local, o “Amigos Bar”. Tempos depois saiu da banda. Carregou consigo outros dois integrantes – Zema e Paulo Cocada (hoje, percussionista de Pinduca) e juntos formaram o “ZIP”.

O trio se fez nas noites de Belém. Eles tocaram nos bares da moda e até num bordel na rua Riachuelo, famosa zona meretrícia do bairro da Campina, próxima a praça da República. Executavam de tudo, samba, bolero, bossa nova, iêiêiê, baladas, carimbó e marchinhas de carnaval – entranhadas na alma do músico, que passou a infância escutando o ritmo, tão apreciado na sua carnavalesca cidade natal.

“Desde pequeno escutava marchinhas e tocava na bandinha que construí no quintal de casa com latas e madeira para tocar com meus amigos. A música entrou assim na minha vida. E aos oito anos, minha mãe comprou meu primeiro violão de um dos clientes da nossa taberna em Cametá e me deu de presente. Aprendi a tocar olhando e ouvindo os outros”, conta Ivan.

Depois do ZIP, resolveu montar sua própria banda, o “Terra Nova” e por quatro anos circulou pelas casas de show, teatros e bares da capital. Lugares que nem existem mais, como “Olê-Olá”, “Escápole”, “Miralha”. É dessa época a apresentação no Cine Líbero Luxardo, no Centur, através do projeto Clima Som. “Ele abria espaço para os artistas no começo de carreira mostrarem seu trabalho. Foi minha primeira vez num teatro aqui em Belém”, relembra Cardoso.

No Terra Nova também não deu certo e Ivan decidiu seguir carreira solo. Contudo, nunca deixou de lado as muitas parceiras que Belém lhe presenteou. “Tenho músicas feitas ao lado de amigos como Ronaldo Silva, Alfredo Moura, Leandro Dias, Jorge Andrade, Renato Gusmão, Mauro Mousinho, se eu for listar todas vamos passar o dia aqui”, diz.

Mas, segundo o músico, o maior de todos os presentes da cidade foi participar do Festival de Música Brasileira, em 2000, realizado em São Paulo, como único representante de Belém com a composição “Moleque Tinhoso” – parceria entre ele e Mauro Mousinho. “Eram quase 30 mil inscritos, ficamos em quarto lugar nas eliminatórias que classificavam para a final. Batemos na trave!”, afirma.

Ivan Cardoso não ganhou o festival, no entanto, ele se basta com o calor humano do povo belenense, que acolhe qualquer pessoa quando chega. “Já viajei muitos lugares do Brasil levando minha música, mas só encontrei aqui essa gente simpática que faz questão de mostrar e indicar suas belezas”, ressalta.

Com 24 anos de carreira e dois CDs lançados, o compositor quer comemorar seus 25 num dos teatros da capital paraense. Quer cantar e tocar suas mais de 200 canções criadas sob inspiração da Baía do Guajará, musa que tantas vezes contemplou. “Já fiz muita música olhando pra ela. ‘Bela Belém’ e ‘Guajará’ são algumas delas. Trabalho em dois locais com vista privilegiada pra Baía, a Estação das Docas e o Boteco das 11, na Casa das Onze Janelas. E ver o pôr-do-sol ou qualquer coisa de lá é maravilhoso”, destaca.


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Um bar: Marujos, na Estação das Docas

Para sentir a verdadeira Belém...tem que dar um passeio pela orla e olhar a cidade de fora. Depois conhecer nossas praças e tomar um tacacá no final da tarde em qualquer esquina, costume mais Belém impossível.

Quem é a cara de Belém: Nilson Chaves. Ele canta Belém, o Pará, a Amazônia.

Uma manifestação cultural? Arraial do Pavulagem

Uma praça? Da República, pela cultura que proporciona ao povo.

Um teatro? O da Paz

Um bairro? Onde eu queria morar: na calmaria do Reduto

O bairro mais musical? Cidade Velha

A melhor música sobre a cidade? Flor do Grão Pará (Chico Senna).

A poesia da revolução

Dançar com a ausência

aproveitar companhias

queimar com paixões

viver o instante

sem desistir de

mudar o mundo.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Ícones da natureza já sentem o aquecimento global

Ursos polares podem ser extintos em 75 anos
80% dos recifes de corais podem morrer em décadas


Brasília, 16 de março de 2009 - Algumas das espécies mais queridas do mundo estão correndo o risco de desaparecer ou diminuir muito o número de populações devido ao aquecimento global. Essa é mais uma razão para os líderes mundiais chegarem a um acordo justo, eficaz e responsável para combater as mudanças climáticas. Este é o resultado do relatório Mudanças Climáticas e Espécies, lançado hoje pela Rede WWF.

Cerca de 80% das espécies de corais do mundo - inclusive do Brasil - podem desaparecer em décadas, enquanto o urso polar pode estar totalmente extinto em seu habitat natural em 75 anos. Outras espécies encontradas no Brasil como golfinhos e baleias, pinguins, tartaruga e albatrozes também estão ameaçadas pelo aquecimento global.

O relatório foi lançado 14 dias antes da Hora do Planeta 2009, um ato simbólico promovido mundialmente pela Rede WWF com o objetivo de mobilizar pessoas, governos e empresas pela luta contra o aquecimento global.

No dia 28 de março, cerca de mil cidades em todo o globo vão apagar as luzes de ícones como a Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, o Teatro Amazonas, em Manaus, a Torre Eiffel, em Paris, a Torre CN, no Canadá, a Ópera de Sidney, em Sidney e o Coliseu, em Roma. A expectativa da Rede WWF é de que um bilhão de pessoas também desliguem suas luzes no mesmo momento: das 20h30 às 21h30, causando uma onda de apagão pelo planeta e mostrando que a sociedade é capaz de se mobilizar em torno de uma causa tão importante como o aquecimento global.

"Pode-se dizer que já é um consenso entre a maioria dos cientistas do planeta que o aquecimento global é causado pelo homem e que irá impactar fortemente os suprimentos de água e comida de muitos habitats", alerta Denise Hamú, secretária-geral do WWF-Brasil.

"Além dos problemas de suprimento, o aquecimento global deve provocar eventos climáticos mais frequentes como tempestades, furacões, secas e inundações e muitas espécies de plantas e animais simplesmente não vão conseguir se mover rápido o suficiente para sobreviver", completa Hamú.

No Brasil, as espécies ameaçadas apontadas pelo relatório são: recifes de corais, baleia jubarte, baleia minke, tartaruga de pente e albatrozes. Outras espécies ameaçadas ao redor do globo são tigre-de-bengala, rato-canguru musky, pinguins imperadores e pinguins adelie, orangotangos, elefantes africanos, ursos polares.

O ano de 2009 é crucial para o planeta, pois em dezembro governos de todo o mundo precisarão se unir para assinar um acordo global de clima justo e eficiente.

"Não há mais tempo a perder. Em dezembro deste ano os líderes mundiais que participam da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em Copenhague devem assinar um acordo global de clima para substituir o Protocolo de Quioto", esclarece Hamú. "E o que nos preocupa é que as negociações internacionais têm se mostrado mais lentas que deveriam. Esperamos que esses líderes se motivem com a demonstração feita pela Hora do Planeta 2009 e agilizem suas discussões e decisões", afirma.
(Fonte: WWF Brasil)

sexta-feira, 13 de março de 2009

Abrindo o armário

Horas esquecidas no salão de beleza? Minutos sem fim na academia? Dificilmente alguém vai encontrar a advogada Mayssa Maia, de 24 anos, num desses espaços. Toda a energia da jovem é canalizada para outra atividade: as compras, em especial, roupas, sapatos e bolsas.


Ano passado Mayssa viajou à Europa e trouxe esses artigos de cada cidade por onde passou. “Eu ia comprando bolsas e mais bolsas e meu pai perguntou: Menina quantos braços tu tens pra colocar tanta bolsa?”, relembra na maior alegria.


Mas nem por isso ela deixa outros aspectos da vaidade de lado. Quando recebeu a Troppo em sua casa, Mayssa esbanjava simpatia e muito apuro com o visual. Unhas bem feitas, cabelo escovado, pele sem maquiagem alguma - mas impecável -, se completavam ao figurino escolhido para a ocasião. Maia trajava um de seus inúmeros vestidos – item indispensável no guarda-roupa dela. “Adoro vestido! Tenho vários, de todas as cores, estampas, modelos, o que você imaginar e pode ter certeza: vestido pra mim é mais do que uma simples peça básica”, disse.


A roupa ainda era acompanhada pela combinação das jóias. Pulseiras de vários tamanhos e estilos nos dois braços, um relógio com detalhes em brilhantes, anéis em quase todos os dedos e um par de brincos chegando ao pescoço. Tudo muito dourado, do jeito que ela gosta. “Percebeste outra coisa em mim, a maioria das minhas jóias têm essa tendência para o ouro”, destacou.


Falante e espontânea, a advogada ia mostrando aos poucos sua personalidade. O senso de organização, por exemplo, ficava estampado quando ela abria o armário. Vestidos, calças, blusas, saias tinham seu lugar especifico em cada parte do móvel. Além disso, as peças estavam devidamente embaladas, reflexo do extremo cuidado na conservação das roupas. “Eu sempre ensaco tudo e gosto de tudo muito arrumado. E eu adoro arrumar meu armário, se torna uma verdadeira terapia pra mim”, ressaltou.


Os pares de sapatos seguiam o mesmo destino das roupas. Todos dentro de sacolas, nas gavetas de uma cômoda reservada por Mayssa exclusivamente aos calçados. No ápice da organização, ela chega a colocar etiquetas nos objetos para saber o conteúdo de cada sacola, caixa ou pacote.


Outra característica da jovem fica por conta do estilo libertário adotado desde pequena. Maia não se prende a modas e convenções, vai de um extremo a outra sem crises. Usa sapato alto, baixo, social, formal, básico, esporte, informal, sandália rasteira. Bolsa de couro, pano, palha, grande, média, pequena. Não tem problema.


Na seriedade do trabalho, ela veste seus tailleurs, acompanhados das calças formais. Contudo, sempre que pode, lá está Mayssa com vestido ou saia nos corredores do tribunal. Colorido é outra marcada registrada. Mesmo no trabalho, ela evita cores fechadas e escuras como o preto – cor da qual não se mostra grande fã. “No meu armário você encontra de tudo, desde terno até saia. Não tenho um estilo, marca essas coisas, sabe?! Posso não gostar de preto, mas posso ver uma blusa preta na vitrine e achá-la linda. Eu vou e compro”, afirma.


Mayssa Maia se apresenta assim livre e solta para agir e vestir como quiser. De vez em quando, inventa moda, faz umas coisas estranhas no cabelo, amarras fitas, lenços. As amigas questionam. Ela pouco se importa. “Se me sentir bem, me achar bonita, uso, visto sem nenhum problema”, frisa.


De personalidade forte, a jovem não se acha vítima da moda, jamais compraria algo que não lhe caísse perfeitamente. “Nunca compro algo só por comprar. Procuro investir em coisas nas quais daqui a seis meses vou poder usar novamente”, diz a advogada.


Maia pode entrar numa Dior e simplesmente não se agradar com nada. Como também pode passar nas barriquinhas da Praça da República e se encantar com bolsas e sandálias em couro, bijuterias feitas com fibras naturais e sementes regionais como tantas vezes já aconteceu. Inclusive, Mayssa costuma fazer pequenas farras dominicais no lugar. “Quase todo domingo vou à República dar uma garimpada, reservo R$ 50,00 só para gastar lá. Vou cedo, antes da agitação e sempre trago objetos legais. Tem muita coisa bonita, brincos, pulseiras lindas”, indica.


Antenada com as novidades da produção local, graças à influência da mãe, a jornalista e presidente de uma Ong de costureiras, Felícia Maia, a jovem elogia os produtos da moda paraense. “Temos boas marcas, bons estilistas como Ana Miranda e Estela Rocha. A produção paraense tem qualidade. Gosto de comprar roupas em Belém, seja no Shopping Center ou no atelier. Certas coisas até prefiro comprar aqui, como vestidos de festa. Enfim, o mercado me satisfaz”, conclui.

terça-feira, 10 de março de 2009

Uma mocoronga apaixonada por Belém

"Minha madrasta, madrinha. Segunda mãe, segundo cais. Onde aportei vida,
minha guarida fiz, busquei a paz. Feliz de quem tem teu colo. De quem, em teu solo,
planta e colhe o bem. Sem mais mocorongas milongas, te amo, Belém."


O trecho da música acima, Minha Madrasta, é uma declaração de amor a Belém do Pará, feita pela compositora e cantora popular paraense Maria Lídia Aires, de 48 anos. Nascida em Santarém, Maria Lídia chegou à cidade em 1977 e logo foi acolhida nos braços de nossas mangueiras. Iniciava aí uma relação profissional e pessoal com a "morena cheirosa". "Vim estudar. Cursei o 2º e 3º colegiais no Moderno e Nazaré, respectivamente. Depois cursei medicina veterinária na FCAP (hoje UFRA). Então, me envolvi profissionalmente com a música e adeus estudo!", conta.

Com 27 anos de carreira, a maior parte deles vividos aqui, ela aprendeu, sozinha, a tocar violão popular, além de estudar piano na sua terra natal. Em 1984, Maria lançou-se como compositora, ao lado da banda Novo Tempo gravou o compacto simples "Carnaval 84" – o primeiro de muitos projetos.

De lá pra cá, Maria Lídia já produziu, divulgou, dirigiu, gravou e participou de CDs e espetáculos musicais. Fora as apresentações nos principais teatros, bares e casas de shows de Belém. Tudo na cidade vira música. Sons, cheiros, gostos, sabores, lugares e pessoas especiais a inspiram em cada nuance e detalhe. "Em Belém, a música flui por todos os lados, sob diferentes gêneros. Tem música para todos os gostos (inclusive para o mau-gosto). Alguns lugares são muito especiais como, a Casa do Gilson e o Bar Bodega, onde se ouve música rica em melodia e letra", afirma.

As memórias da cidade estão quase todas atreladas ao universo dos bairros de Nazaré e São Brás, onde passou os melhores momentos de sua vida. Nesses lugares, ela viu nascer e morrer mangueiras. Namorou, cantou, tocou, compôs. Enfim, Lídia viveu. "Acho que uns 60% das minhas ações e dos meus sentimentos se passaram nesta parte de Belém", acredita.

Para a cantora, Belém acolhe, proporciona sabedoria, dá amigos e traz muita felicidade. Ela atenta ainda para a generosidade do povo. Sente o cheiro das mangas, prova os sabores da terra. E vislumbra as cores das pessoas, prédios e praças. Um verdadeiro lar, onde elege seus pontos preferidos. "Gosto dos casarões antigos da Cidade Velha, do Ver-o-Peso, de algumas praças arborizadas, do Museu Emílio Göeldi, dos teatros, bares e, principalmente, do complexo do Teatro da Paz (o teatro, o Bar do Parque e a Praça da República). Acho belíssimo e muito charmoso aquele pedaço", diz.

Mas, a cidade também conserva aspectos abominados por qualquer belenense. "Não me agrado com pessoas mal educadas que despejam lixo pela cidade. Gente pegando ônibus no meio da rua, ciclistas desatentos, motociclistas irresponsáveis, pedintes sadios (ou drogados) nos sinais, violência e descaso das autoridades", declara.

Na opinião da compositora, o roteiro ideal para conhecer Belém começaria numa bela tarde de sábado, lá pelas 16h. "Passear no Ver-o-Peso e comprar bugigangas mil, caminhar para o Complexo Feliz Lusitânia, visitar o Museu do Círio, assistir ao por do sol no Píer das Onze Janelas ou no Ver-o-Rio. Depois ir ao Bar do Parque tomar uma cerveja gelada. No início da noite assistir a um bom espetáculo no Teatro da Paz ou no Margarida Schivasappa. Mais tarde, ir à Casa do Gilson escutar chorinho e samba. Meia-noite, passar na Esther Lanches para comer um sanduíche de frango com banana. Uma hora da manhã, ir bater papo com artistas, jornalistas e boêmios no Bar Bodega. Três da madrugada (para quem ainda tiver pique) ir ao bar Pai D’Égua tomar a saideira", explica.

Box:
O que há de mais representativo na cidade em relação as mulheres?
A simpatia, a cor e o sotaque.
Quem é a mulher com a cara de Belém para você? A atriz Natal Silva
Um bar? Bodega Espelunca Delivery.
Um restaurante? Peixaria Amazonas.
Uma manifestação cultural?O gênero musical Lundu (Lundum).
Uma praça? Praça da República.
Um bairro? Nazaré.
Um ponto turístico? Teatro da Paz.
Qual o lugar é a cara de Belém? Ver-o-Peso. Pela arquitetura e história.
Um teatro? Para música popular, Teatro Margarida Schivasappa.
Quem é a cara de Belém?O vendedor de brinquedos de miriti.
Qual a melhor música sobre Belém? "Bom-dia, Belém" (Edyr Proença e Adalcinda Camarão)

sexta-feira, 6 de março de 2009

A filha que toda mãe gostaria de ter

Não posso deixar de falar do amor da minha chefe, Waleiska Fernandez, pela mãe. Hoje, ao ler seu blog o Falo porque tenho boca, lá estava dona Waleiska declarando em bela prosa o significado da figura mãe.

É dona Wanda, a senhora tem uma filha que merece toda admiração. Parabéns pelo trabalho!
Leiam no link abaixo as palavras da filha em homenagem a sua grande mãe.
http://faloporquetenhoboca.blogspot.com/2009/03/minha-super-mulher.html

quinta-feira, 5 de março de 2009

Poema aos amantes

Defendo os amantes perseguidos,
os amantes de encontros clandestinos,
os amantes de tanto desatino,
os amantes difíceis,
profanos.

Defendos os amantes que se escondem
e desbordem em rápidas carícias:
os furtivos, urgentes, os amantes arriscados, possessos e valentes.
Defendo os amantes verdadeiros,
os que assumem o risco da noite,
os desnudos amantes perseguidos,
os amantes de parques apagados,
os amantes camuflados, os defendo, os cuido, os invejo.

(Augusto Blanca)

terça-feira, 3 de março de 2009

O texto da vida

Apesar de tocar a morte no texto que reproduzo abaixo, Eliane Brum também fala da vida. ( A reportagem é de agosto de 2008)
Uma verdadeira aula: antes de ser repórter é preciso ser humano!

A mulher que alimentava

ÉPOCA acompanhou os últimos 115 dias da vida da merendeira Ailce de Oliveira Souza, morta há um mês

Eliane Brum e Marcelo Min (fotos)


SEM TEMPO

"É tão estranho”, ela diz. “Passei a vida inteira batendo ponto, com horário pra tudo. Quando me aposentei, arranquei o relógio do pulso e joguei fora. Finalmente eu seria livre. Aí apareceu essa doença. Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Ela está intrigada com essa traição da vida. Sua expressão é de perplexidade. Ailce de Oliveira Souza não é uma filósofa, é uma merendeira de escola. Toda sua vida havia sido de uma concretude às vezes brutal. E agora a morte chegava exigindo metáforas.

Lá fora faz sol, e os vizinhos vivem na primeira parte do poema de Manuel Bandeira. Quando o enterro passou/Os homens que se achavam no café/Tiraram o chapéu maquinalmente/Saudavam o morto distraídos/Estavam todos voltados para a vida/Absortos na vida/Confiantes na vida. Lá dentro, sentadas uma diante da outra, eu e ela vivemos o segundo ato. Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado/Olhando o esquife longamente/Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/Que a vida é traição.

Ailce nunca deixou de se sentir traída por “essa doença”, como se expressa na maior parte das vezes, ou “o tumor”. Não pronuncia a palavra câncer. Quando nos conhecemos, em 26 de março, faz quase um ano que sua pele amarelara e ela se enchera de náuseas. Ailce se revolta contra Deus. É dele a traição.

Seu câncer é uma pedra no meio do caminho das vias biliares. O tumor obstrui a passagem e, sem ter por onde escoar, a bile é lançada no sangue, e a deixa inteira amarela. Quando ganha essa cor solar, Ailce ainda não tem 66 anos. E acredita viver o melhor tempo de sua vida. “Sem filhos, sem marido, aposentada, livre”, diz. Ela planeja conhecer as obras de Aleijadinho, nas cidades históricas de Minas Gerais, e a Espanha dos filmes de Sarita Montiel. Quando a paisagem passa veloz pela janela do ônibus, sente que está indo para um lugar que sempre quis, não importa o destino. “Você já reparou como a gente muda quando viaja? Parece que me liberto de tudo”.

Ailce anda de ônibus por todo lado, dança em bailes da terceira idade, vive um romance com um homem mais jovem. “Você acredita que, quanto mais eu danço, mais tenho vontade de dançar?” Ela dança sozinha pela liberdade de rodopiar pelo salão sem que ninguém a conduza. Sempre quis conduzir ela mesma sua vida. Escolhe seus passos no salão de baile enquanto suas células a traem no silêncio de seu corpo.

Se câncer é a palavra que não diz, liberdade é a palavra que repete. Ailce está presa, literalmente. Sua vida depende de duas mangueiras fincadas dentro dela. Elas drenam a bile para fora de seu corpo. O líquido amarelo escoa em dois recipientes de plástico que ela carrega numa sacola de supermercado nas andanças dentro de casa, numa bolsa decorada com as princesas da Disney quando passeia. Um dia um segurança olha feio para sua bolsa achando que ela está furtando produtos da prateleira. E devagar Ailce vai deixando de sair. Desliga a música dentro de casa. E não dança mais.

Estar presa a horroriza. Passou a vida esperneando para escapar de uma prisão metafórica. E agora está amarrada não aos fios invisíveis que a ligam às convenções do mundo, como a todos nós, mas às duas mangueiras de material sintético que drenam o rio poluído de seu interior. “A gente não vale nada. Olha o que sai de mim”.

Quando entrou na sala de cirurgia, achava que faria apenas um exame complicado. “Lembro que o médico cantava pra me acalmar. Não lembro a música. Eu dormi com a anestesia e quando voltei estava numa maca, no corredor. Eu sentia um frio muito grande. Tremia. Vi os drenos e descobri que estava presa”.

Ela logo descobre que sou um terceiro fio na vida dela. Ela nunca tinha falado muito de si mesma. Desse dreno de palavras ela gosta. “A gente fica guardando coisas por toda a vida. Quando eu falo, parece que elas vão se soltando dentro de mim. Me liberto”.

Ailce é uma mulher comum. Nunca pensou que sua vida dá um romance. Nem mesmo uma reportagem. Ela não alcançou o Pico do Everest, nem desvendou a espiral do DNA ou compôs uma sinfonia. Também não queimou sutiã em praça pública. Ailce viveu.

Na narrativa de sua história, ela começa a decifrar pequenas singularidades despercebidas numa existência em que o tempo foi devorado em turnos de trabalho. Ailce percebe que não há como dar sentido à morte, mas ela pode dar sentido à vida. Só assim poderá suportar a superfície fria de um fim que já toca com as mãos. Para viver tão perto da morte, ela precisa adivinhar a tessitura da vida. Do contrário, só lhe restam aquelas mangueiras sintéticas.

Ailce sempre desejou se “libertar” e, como muitos de nós, nunca conseguiu definir muito bem de quê. “Eu gosto de ir pra frente”, diz. Descobre então que terá de enfrentar não a Medicina, mas a Poesia: Temos, todos que vivemos/Uma vida que é vivida/E outra vida que é pensada/E a única vida que temos é essa que é dividida/Entre a verdadeira e a errada.

Intuitivamente ela sabe que sua sanidade depende de enfrentar o caos da vida, mais do que o da morte, que é só um ponto final em geral improvisado. E então, com esforço e não sem sofrimento, ela poderá se reconciliar com os pontos soltos, os padrões interrompidos, as costuras tortas da trama do vivido. Para ela, o mais difícil é aceitar que alguns bordados ficarão por fazer. Ou, pior, serão tecidos sem ela.

Ela é a quarta filha de nove, a penúltima com o nome iniciando por “a”. Ailton, Amilton, Adailton, Ailce... “Eu sentia falta de espaço, de um canto só meu”. No final de sua vida, ela tem não apenas um canto, mas uma casa só sua. Ampla, dois andares, é a encarnação em concreto de seus esforços. Pela casa ela sacrificou muito. Mas quando adoeceu descobriu que a casa transformara-se numa prisão. Agora quer se libertar da casa. Mas, a cada semana, a cada mês, seu espaço encolhe. Primeiro, o portão da rua marca a fronteira de seu mundo. Depois, a porta da frente. Em seguida, seu território é circunscrito ao 2º andar. E, por fim, tudo o que tem é o quarto.

Ailce então fecha a janela na cara do sol e não sai mais da cama. Nessa época, ela descobre que é possível viver na memória. E refaz o itinerário de sua vida. Ela nascera em São Romão, cidadezinha mineira forjada em histórias de sangue. E sua infância cabia num vão entre a largueza do São Francisco e um riacho de nome Escuro, que banhava a fazenda da família. Crescera cercada de água por todos os lados, mas tinha medo de nadar. Seu pai havia sido capitão de porto, delegado de polícia, juiz de paz. Sua mãe fora uma mulher forte, que fugira do primeiro casamento, aos 13 anos, com a pequena Maria pela mão. Mantinha a casa e os filhos asseados, as toalhas bordadas bem alvas, a cozinha mergulhada numa névoa de vapores perfumados.

Essa memória olfativa feita de temperos, toicinho e doçura engendrada nas panelas da mãe acompanhou Ailce por toda a vida. Perto da morte tornam-se mais vivas. Quando as toxinas liberadas pelo tumor envenenam o corpo, e ela enjoa de tudo, lembra o feijão gordo, o pão de queijo, os biscoitos de polvilho. E sua boca castigada é afagada por uma saliva de infância. Ailce, que já não consegue comer, lambuza-se em banquetes de lembranças. Mais tarde, 18 quilos mais magra, e já sem forças para andar até o banheiro, ela ainda suspira por uma broa de dona Santa.

Ailce deixou a casa dos pais aos 18 anos. Diante de suas ânsias de mulher jovem, a cidade criara paredes. “Eu queria conhecer coisas novas”, diz. “Ser independente”. Escorregou no mapa e desembarcou em Guarulhos, São Paulo, na casa de um irmão. E de novo sentiu-se confinada. Mudara de geografia, mas não de sina, e para ela os 60 não foram anos loucos. Costureira, moça de fábrica, entre linhas, agulhas e bobinas teve as primeiras revelações sobre sexo, quando ao voltar da lua-de-mel uma colega relatou que não só doía como jorrava um líquido branco do membro do homem. Ailce arquivou a informação para não fazer cara de surpresa quando sua hora chegasse.

Nessa época, Ailce se apaixonou por um rapaz de olhos verdes, e ela, que sempre foi muito prática, deu para devaneios. Espremida na cama de armar que dividia com uma amiga, falava de amor e ria à toa. No sábado, anunciava: “Vamos ao baile de vestido novo”. Costurava então uma saia bem rodada para cada uma, orgulhosa da cintura de 54 centímetros. Muito mais tarde, Ailce vai esquecer os fios sintéticos fincados em seu fígado ao lembrar de seu vestido de organza azul. Mas o moço bonito não queria saber de casamento, e Ailce chaveou o coração.

Desde aqueles dias, Ailce jamais deixou de sair de casa impecável. “Ailce vem à consulta muito bonita, cabelos pintados, brincos, salto alto”, escreve a médica Maria Goretti Maciel no prontuário da Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, em 2 de abril. Mais de uma vez Ailce entra no hospital com as pernas bambas, mas sobre saltos. E, quando ainda não pronuncia a palavra morte, usa a metáfora “cair”. “Eu não aceito cair”.

"Você acredita que, quanto mais eu danço, mais sinto vontade de dançar?"

Aos 23 anos, ela tomou uma decisão pragmática. Casou-se com um operário chamado Jaime, rapaz alinhado que não botava a cabeça fora de casa sem brilhantina, sem um lustro nos sapatos. “Eu queria ter uma casa só minha”, diz Ailce. “Ele era honesto, trabalhador, andava de terno e gravata, tinha uma família boa. Casei”. Ailce não adivinhou que um moço tão distinto teria ganas de beber além da conta. Nem que uma parte do futuro seria gasta nas tribulações de mulher de alcoólatra. No caso dela sina ainda mais triste porque nada tinha da originalidade que planejara para si. Assinou o livro do cartório convencida de que romance era incompatível com a vida adulta. E essa foi sua primeira capitulação diante de seus sonhos.

DO FIM
Ailce no quintal de sua casa, em abril, um ano depois dos primeiros sintomas do câncer

Esse marido “era da raça de espanhol, tinha sangue quente”. E esse fogo acabou incinerando Ailce, que já casou com o primeiro filho aconchegado numa curva da barriga. Só mais tarde ela soube que havia um nome para o que sentiu quando Marcos nasceu de cesariana. “Eu não queria aquela vida, queria uma vida diferente”, ela diz. “Então rejeitei”. Ailce chorou, envergonhada de seus pensamentos. Só décadas depois, perdoou a si mesma ao descobrir que tivera uma depressão pós-parto, comum a muitas mulheres, e não uma crise existencial em que questionava o que fora feito de suas grandes esperanças. Quando as primeiras semanas viraram meses, foi tomada por um amor tão grande por aquele filho que, perto do fim, ainda acredita que ninguém cuida tão bem dele quanto ela.

Quando a segunda vida pediu passagem dentro dela, Ailce chorou de novo. O marido bebera demais e escalara a cama para deitar-se com ela. Ailce agarrou um cobertor e enrolou-se no chão. Sentia-se presa numa teia que não planejara tecer. “Chorei. Não era essa vida que eu queria pra mim”, diz. “Pensei então que meu bebê poderia ser uma menina e me acalmei”. Luciane nasceu miúda, alérgica a leite e com o gênio forte das mulheres da família. Menina estranha, desde os 7 anos escondia-se na cama da mãe para não ser assaltada por coisas do outro mundo.

Esses dois filhos dão a Ailce as duas pontas com as quais ela amarra o final de sua vida. Marcos, funcionário de escola como ela, cuida das feridas do corpo. Aos 42 anos, é um homem quieto, que tranca as emoções em algum lugar entre o coração e o estômago. Ao entrar numa sala, ocupa um canto. Quando a mãe adoece, ele aprende a fazer os curativos e a limpar os drenos, administra seus remédios e prepara o café-da-manhã. Quando ela se torna mais fraca, passa a lhe dar banho. “Não fica com vergonha da mãe”, diz Ailce. “A mãe também deu muito banho em você”. É esse filho silencioso, com a coragem de enfrentar a carne da mãe, que transforma o horror da doença num carinho cotidiano. Pelo toque, ele torna possível para Ailce suportar um corpo em que a bile escorre no lado externo.

Ao igualar-se a um corpo infantil para vencer a interdição entre mãe e filho, Ailce assinala a perda do feminino nela. “O tumor me tirou tudo. Eu perdi peito, bunda, cintura, tudo”, diz. Ailce agora se preocupa cada vez menos com a nudez de um corpo que a trai de todas as maneiras possíveis. E que parece pertencer somente à doença.

A figura miúda de Luciane está sempre no centro. Como a mãe, ela encontra sentido na ação. Depois de crescida, apaziguou-se com o sobrenatural virando mãe-de-santo no candomblé. Luciane vasculhou a história da família e descobriu que a avó materna era cigana. No Rio de Janeiro, onde vive com o marido, Jorge, faz uma festa anual em homenagem a uma ancestral chamada Carmen que fala espanhol pela sua boca. Ailce aceita o mistério. E ela, que nunca aprendeu espanhol, conversa com a cigana como uma velha amiga.

Luciane dá à mãe essa dimensão mística da vida. Pelas mãos dessa filha ela encontra significados para um estar no mundo que para ela foi sempre tão concreto. Luciane lhe dá uma história que avança além da sua, e lhe dá um lugar nessa história. Perto do fim, sua pequena vida faz sentido numa trama maior. A cada novembro é ela quem acende a fogueira da ancestralidade, vestindo saias coloridas, e sua figura se reveste de uma solenidade que resiste ao comezinho de uma vida de cartão de ponto. Depois, ela rodopia ao som do violino cigano e ali, finalmente, apalpa com os pés no ar uma liberdade que até então ela só pressentira. E, por ter um passado antes do nascimento, terá um futuro depois da morte.

Do meu lugar de observadora de um quadro familiar, ora na cena, ora fora dela, me pergunto se esses filhos, cada um a seu modo, compreendem o tamanho do que dão à mãe. Ailce precisa do que cada um deles pode dar, até o fim.

Ela só descobriu o tumor quando foi enviada para a Enfermaria de Cuidados Paliativos, depois de enfrentar sete meses de tratamento em outro setor do hospital. Ailce suspeitava do diagnóstico, mas preferia não ter certeza. Na Enfermaria, a verdade a encurrala. “Antes, os médicos falavam lá na língua deles. Eu escutava a palavra tumor, mas não perguntava. No Paliativos, me contaram que eu tinha um tumor num lugar que não podia ser mexido. Fizeram um desenho. Eu pensei que faria quimioterapia e ficaria boa. Então disseram que eu não poderia fazer. Me revoltei. Achei que Deus não existia. Eu sempre quis ir além e agora não posso mais ir a lugar algum”.

Ailce conta – e imediatamente “esquece” o diagnóstico. Nas visitas seguintes, ela me testa: “Acho que não tem nada dentro de mim”. Ela deseja muito que eu confirme seu pensamento mágico. Nessas horas, eu sinto dor na garganta, pelas palavras que não posso pronunciar, mas que gostaria muito de dizer.

Incapaz de enfrentar meu silêncio, ela contemporiza. “Ainda bem que eu não tenho dor”. Lourdes, que limpa a casa, cozinha e cuida dela, a socorre: “Você não tem câncer. Eu tinha uma tia com câncer e ela gritava de dor. E tinha um cheiro tão horrível que ninguém chegava perto. Você não tem cheiro nenhum”. São duas mulheres sozinhas na casa – e uma delas tem uma sentença de morte. Elas me observam com o canto do olho, temerosas de que eu desmanche com palavras o frágil equilíbrio de seu milagre.

É início de abril, e Ailce está feliz porque o apetite voltou. É resultado do tratamento paliativo, que ameniza os sintomas. “Repeti o prato na hora do almoço”, anuncia. Ailce mima suas orquídeas, conversa com as plantas, comparece às festas de família, quer comprar roupas novas. Suspira por atos banais, mas que agora se enchem de raridades: um banho de chuveiro sem preocupação com os fios; dormir de bruços, que já não pode mais. Ailce vive dias ensolarados. Está comendo, está curada.

E eu também preciso comer. Ela não permite que eu saia de sua casa sem antes repetir o bolo. Criada no interior, esse é um ritual que compreendo. Só mais tarde percebo que, para Ailce, oferecer comida é a chave de uma vida. Ela tornou-se merendeira de escola depois de passar Por 27 anos ela alimentou num concurso público com nota 9,5. crianças carentes. Na segunda-feira, acolhia-as com uma caneca de leite, para que tivessem forças de entrar na sala de aula. Era dela a missão de mantê-las vivas, era ela quem operava o milagre de fazer crianças quase desmaiadas correr pelo pátio.

Ailce adorava isso. Seu pai queria pagar seus estudos de professora, ela não quis. Queria ser enfermeira, não conseguiu. Encher a barriga de crianças famintas emprestava grandeza a sua vida. “Nunca cheguei atrasada, trabalhava doente porque precisavam de mim. Eu fazia sopa, leite com cacau, sagu. Às vezes, fazia seis caldeirões de 40 litros. E as crianças comiam tudo, com tanto gosto. Ficavam sábado e domingo sem se alimentar e na segunda-feira muitas desmaiavam. Eu não podia fazer nada fora da escola, mas dentro elas comiam à vontade”.

Antes de ser enviada para a Enfermaria de Cuidados Paliativos, um médico, sem coragem de contar a ela a verdade, lhe disse: “Você precisa comer bastante para ganhar peso. Então, quando estiver mais forte, vamos operá-la”. Ele não sabe o que fez. Comer, ficar forte e melhorar é o mantra de Ailce. Entre um médico que lhe acenou com a possibilidade de cura e todos os outros que só têm a verdade para dar, é óbvio que ela acredita no primeiro.

Em meados de maio, Ailce piora. Os enjôos retornam, a comida não passa na garganta. A equipe de visita domiciliar do Serviço de Cuidados Paliativos é cada vez mais assídua. Desentope os drenos, faz curativos, resolve o que é possível para que Ailce não gaste seus dias no hospital. Os medicamentos são substituídos em consultas ambulatoriais, mas ela está numa fase crítica. O desespero por não conseguir comer a consome, pede às médicas que lhe dêem remédio “para abrir o apetite”. Mas nenhuma comida é preparada do jeito que ela instruiu, não há tempero que não se torne amargo em sua boca. Culpa então a mulher que ocupa seu lugar na cozinha por não conseguir fazer por ela o que passou a vida fazendo pelas crianças desmaiadas. Na intimidade da casa é um tempo de grandes dramas para as duas mulheres. Ailce está num lugar insuportável: ela, que sempre alimentou a todos, morrerá porque não consegue comer.

Ailce mede 1,40 metro, mas briga como se tivesse tamanho de jogadora de vôlei. Em junho, é difícil para ela botar uma perna na frente da outra. Mas caminha. Tremendo, cheia de fúria. “Tira a mão do meu braço que eu ando sozinha”, diz. “Mas a senhora cai”, preocupa-se a filha. “Não caio”.A filha tenta lhe dar café. Ela fecha a boca. “Eu mesma tenho de tomar”. Derruba, mas é ela quem segura a xícara. Pergunto porque isso é tão importante. “Eu tenho de ser eu”, diz ela.

Nessa época, Ailce beira o impossível: tinha “esquecido” a doença, mas a doença não a esquecera. Culpa os médicos porque não vê “progresso”. A família cogita consultar outros profissionais. Em seguida, desiste. Teme o que ouvirá no final da consulta.

Então a tempestade chegou. Na manhã de 19 de junho, depois de uma noite de sonhos desencontrados, Ailce anuncia que quer morrer. Não acredito que queira. O que está dizendo, pelo avesso, é que quer viver. Do jeito dela, pede ajuda. Nos encontramos na lanchonete do hospital. Ela tem os olhos cheios de lágrimas, as mãos tremem. Duas desconhecidas lhe falam de Deus. Invocam o “deus do impossível”.

À espera da consulta no ambulatório, Ailce revolta-se: “Quero uma definição. Não vejo melhora. Por que não amarram isso dentro de mim?”. Ailce não só esquecera o que os médicos lhe explicaram muito tempo antes, como esquecera também o que havia contado a mim menos de dois meses atrás. Pela primeira vez, interfiro: “Fale tudo o que está sentindo nessa consulta. Tire todas as suas dúvidas”.

"A história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim?"

A médica abraça Ailce com carinho. O sol atravessa a janela e bate diretamente nas duas mulheres sentadas uma diante da outra, iluminadas como num palco. Ailce começa: “Eu não sei o que eu tenho”. Goretti Maciel responde: “Você não lembra a nossa primeira conversa?”. Ailce não lembra. “Eu lhe contei que tinha uma pedra no meio do caminho.” Ailce ouve a explicação de novo – e de novo seus olhos acompanham a mão da médica riscando no papel a arquitetura da morte dentro dela. Ela diz: “Mas não dá para pular aqui por cima e juntar aqui?”. Goretti diz: “Infelizmente não dá para fazer um viaduto”. Dessa vez, Ailce não recua: “Então não tem cura? Então isso vai até quando...”. E interrompe a frase.

Toca o celular da médica. A música é a trilha do filme Missão: Impossível. Ela desliga.

“Paliativo vem de palium, que quer dizer manto”, diz a médica. “É o que a gente faz aqui: jogamos um manto sobre a doença. O tumor vai lançando toxinas pelo corpo e isso provoca sintomas. Os medicamentos disfarçam os sintomas. Mas um dia não vamos mais conseguir amenizá-los. Quando esse dia chegar, meu compromisso é que a gente nunca vai abandoná-la. Vamos cuidar de você até o fim.”

Ailce deixa o consultório ereta, os olhos secos. Está de salto alto. Dessa vez, se apóia no meu braço. Mas ainda é ela: “Será que se eu engordasse um pouco não daria para fazer cirurgia?”. Desta vez, me sinto autorizada a falar: “Ouvi tudo o que a médica disse. Não importa se a senhora está gorda ou magra. Não é culpa sua. O tumor é que está num lugar do qual não pode ser retirado”. Ela então me olha com a esquina do olho e diz: “Acho que já tinham me contado. Mas não dá pra lembrar de tudo”.

Em julho, Ailce não sai mais da cama, nem mesmo abre a janela. Mergulhada numa escuridão que não depende da rotação do planeta, ela prefere deixar o sol do lado de fora. Usa fraldas porque não alcança o banheiro, tem frio mesmo quando faz calor. Mas ainda conta histórias e não me deixa sair de sua casa sem repetir o bolo.

Na segunda-feira 14 de julho, seu quarto tem cheiro de morte. E seu corpo parece menor sobre a cama. “Meu tempo está acabando”, ela diz. E eu sei que é verdade porque ela parou de brigar. A revolta se extingue dentro dela, a voz se suaviza. Quando ela toma água, ainda segurando o copo, o gosto é amargo. Ela sempre temera a dor, e a dor havia chegado. “Estou ferida por dentro. Sinto cheiro de podre.”

Ailce descreve todas as mortes da família. Do pai, que morreu em casa, da mãe, no hospital, do marido, de doença de Chagas, do irmão, num acidente. Depois desse inventário do fim, ela conclui: “Agora sou eu que estou no finzinho”.

À noite, a dor aumenta. Ailce pede à filha que chame o Preto Velho. Quando a entidade que assume muitos nomes nas religiões afro-brasileiras se manifesta, pela boca de Luciane, Ailce pede: “Me leva. Nada mais me prende neste mundo”. O Preto Velho brinca com ela. “Não é tão fácil assim, minha filha. No céu tem fila. Vou ver se consigo uma vaguinha para você cuidar das crianças”. Nesse contrato místico, PretoVelho promete a Ailce que a levará ainda naquela semana.

Em 14 de julho, Ailce percebeu que seu tempo tinha acabado. No dia seguinte, foi levada ao Hospital do Servidor Público Estadual para morrer sem dor na Enfermaria de Cuidados Paliativos.

Pensei muito em como descrever essa noite. Cheguei à conclusão que a morte é dela. Ailce tem uma fé bem ecumênica. Desde que adoecera, ela nunca recusou ajuda espiritual. Toda semana recebia hóstia de voluntárias católicas, e sempre abriu a porta para padre e pastor. Mas é quem ela chama de Preto Velho que a conforta na noite mais longa de sua vida. “Eu vou, mas volto”, diz. “Vou segurar sua mão e preparar um Nós estamos velhinhos. Empresto caminho de lírios pra você passar. minha bengala e meu banquinho. Quando eu cansar, você levanta e eu sento. Quando você cansar, eu levanto e você senta. Seu corpo está doente, sua alma está limpa. Você é uma flor”.

Na manhã seguinte, Ailce despede-se de sua casa. Desce a escada carregada, seus pés estão descalços e não mais encostam no chão. Lourdes soluça. E promete fechar bem a porta. A papagaia já não come. E o cachorro Dunga, chorando, se esconde dentro da casinha. Na despedida da mulher que a habitava, a casa parece agonizar.

No hospital, Ailce me pede que arranque suas meias do pé. “Não gosto de me sentir presa”, afirma. Ela está morrendo e suas unhas estão pintadas de cor-de-rosa. Pergunta: “A história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim?”. Eu me acovardo: “Não sei”. Seus olhos amarelos me perfuram. “Não sabe?” Eu minto: “Acho que não falta mais nada”. Ambas sabemos que falta a morte.

Eu preciso dizer: “E é uma vida bonita”. Ela pede confirmação: “Você acha?”. Eu asseguro: “A senhora brigou pelo que queria, criou seus filhos, construiu sua casa, matou a fome de tantas crianças. A senhora viveu”. Ela conclui: “E nunca pedi nada para ninguém”.

Os remédios fazem efeito e ela escorrega para um sono tranqüilo. A médica Veruska Hatanaka esforça-se para que ela não sinta dor, mas que consiga se despedir. É uma arquitetura química delicada. Luciane tem 40 graus de febre, Marcos traz a mulher para se reconciliar com a sogra. Ailce pergunta pelo único neto, Ramom. Às vezes, acorda para pedir água e faz questão de segurar o copo. “A água está mais doce agora”, diz. Ailce já não come. E isso não mais a machuca. Mas, ao abrir os olhos, tarde da noite, ela pergunta se eu comi.

Na quarta e na quinta-feira, Ailce quase só dorme. Ao redor dela se alternam os irmãos, os vizinhos, os amigos. Eles contam histórias da vida dela. Seu irmão caçula coloca uma mão grande sobre seu rosto e chora: “Eu te amo muito. Você quer que eu traga um café para você?”. Ela abre os olhos, balbucia: “Eu também te amo”. E volta a dormir. “A gente dormia na mesma cama de armar, na cozinha”, conta uma amiga. “Eu namorava um rapaz que era a cara do Elvis Presley e ela namorava o Maurício, um loiro de olhos claros”. Ri e chora. “Meu pai era muito apaixonado por ela”, diz Luciane.

Uma fotografia desse momento mostra Ailce na cama e a família ao redor. Há um movimento em cada um deles, nela nenhum. Eles falam dela, mas ela não está lá. Ailce se retira do palco, e a vida de todos seguirá sem ela. Fragmentos de sua vida esvoaçam a seu redor em forma de lembranças enquanto ela morre. Mas Ailce ainda escuta. Abre os olhos sempre que alguém pronuncia o nome do neto. E, quando ficamos sozinhas, eu digo: “Muito obrigada por ter me contado sua história. Eu vou escrever uma história linda sobre sua vida. E nunca vou me esquecer de você”. Percebo então que ninguém confiara tanto em mim. Muitas vezes eu fui a única testemunha de sua vida. Eu escreveria sua história, e ela estaria morta.

Na sexta-feira 18 de julho, Ailce desperta depois do banho. Está inquieta. É difícil entender o que diz. Pede água, mas agora é preciso umedecer um pedaço de gaze e colocar entre seus lábios. Já não há movimento nos drenos, seu corpo está parando de funcionar. Ailce se contorce, começa a arrancar a roupa. Fica nua. No final da manhã, a médica Juliana Barros a liberta dos fios sintéticos de sua vida, agora inúteis. Ailce finalmente está livre.

Quando os filhos chegam, Ailce os reconhece. Ela esperava por eles. Então volta a dormir. Às 15h50 ela abre os olhos de repente. Está lúcida. Enquanto seus olhos erram pelo quarto, Luciane diz: “Vamos dançar, mãe. Vamos botar nossa roupa pra gente dançar. A senhora está linda vestida de cigana. Já curou, mãe. Não tenha medo, eu estou segurando a sua mão. Vou lhe ajudar a atravessar. Está todo mundo esperando pela senhora. Eu te amo tanto, mãe. Muito obrigada por tudo”.

A filha desenha com pétalas brancas o contorno do corpo da mãe. O olhar de Ailce é de infinita tristeza. Seus olhos vagam pelo quarto e se cravam na câmera. E sua respiração apaga devagar.