Desde que entrei no curso de Jornalismo muitos personagens passaram pela caminhada em busca do que eu queria nessa vida de repórter. Conheci gente boa, muito boa. Pessoas para se admirar. Conheci gente ruim, digna do mais profundo desprezo, pela lama em que transforma a profissão. Mas entre aqueles os quais eu admiro muito e me espelho para cada vez mais ser humana antes de ser repórter está Eliane Brum.
Repórter especial da revista Época, já escrevi algumas vezes sobre ela neste blog, e já postei alguns de seus trabalhos aqui. Lendo sua coluna semanal no site da Época, novamente me emociono com o texto de Eliane sobre uma de suas personagens, a dona Ailce. Alguém que mudou radicalmente a vida de Eliane.
Quando Eliane esteve em Belém, perguntei qual foi o personagem mais transformador na vida dela. Brum respondeu Ailce. Com Ailce ela aprendeu a não ter medo da morte entre tantas outras lições. Leia as linhas a seguir e você entenderá a minha admiração e respeito pela jornalista.
Carta de adeus
Minha vida no primeiro ano de sua morte
Eliane Brum
Querida Ailce,
na semana que passou, acordei pensando em você. E, várias vezes por dia, me pegava com alguma cena sua na cabeça. Voltei à reportagem em que contei os últimos 115 dias de sua vida e percebi que completava um ano de sua morte. Você entrou no hospital para morrer em 15 de julho. Nesse dia, na cama asséptica do apartamento, você me pediu para tirar suas meias dos pés. Você nunca gostou de meias nos pés, sentia-se presa. E você não gostava de nada que lhe prendesse, porque muitas vezes se sentia aprisionada numa vida que não sonhou. Mas nos últimos tempos da doença, você sentia muito frio. Na cama do hospital, tirei suas meias e descobri que você estava morrendo com as unhas dos pés pintadas de cor de rosa. Dei um meio sorriso triste. Era tão você, morrer de unhas feitas. Quantas vezes me alertou que uma mulher só podia sair de casa bem vestida, maquiada, com brincos e de salto alto. Então, com os pequenos pés ao sol, você me olhou e disse: “Acho que a história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim”.
Só naquele instante eu abarquei a grandeza do que você tinha me dado. Você permitiu que eu testemunhasse o fim da sua vida e contasse uma história que jamais leria. Você me deu a história de sua vida – e a de sua morte. Era minha a narrativa de sua existência, a marca escrita de sua passagem no mundo. Ninguém nunca havia confiado tanto em mim. “Eu vou escrever uma história linda sobre você”, eu disse. Foi nossa última conversa. Mais tarde, naquela mesma noite, você ainda acordou e perguntou se eu e o fotógrafo Marcelo Min havíamos comido. De novo, era tão você. Estar morrendo e preocupada se estávamos bem alimentados.
Era você a mulher que alimentava. A merendeira de escola que alimentou por décadas crianças famintas de comida e afeto nas escolas de periferia. O câncer – palavra que você nunca pronunciou – a impedia de comer, envenenava seu sangue. Então, você comia pela minha boca, me engordando com bolos e pães de queijo. E, dia após dia, enquanto lembrava dos cheiros da cozinha de sua mãe, no interior de Minas Gerais, me transmitia receitas, lambuzando-se de recordações. Naquelas conversas telefônicas de cada dia, você na sua casa, eu na revista, comíamos por lembranças. E, pelas suas memórias, minha vida povoou-se de sabores de um fogão de lenha desconhecido.
Na tarde de 18 de julho de 2008, seus olhos erraram pelo quadrilátero do quarto do hospital. Eram dois oceanos agitados de saudade salgada. Então a derradeira tempestade amainou e você fixou sua última cena.
No último sábado, completou-se um ano de sua morte. Eu comi uma feijoada por você. O arroz do restaurante estava como você gostava e, com paciência, me ensinou dezenas de vezes a preparar. A percepção de que a comida nos dá vida e metáforas foi algo que sempre nos uniu. Pela manhã, ao me vestir, eu hesitei diante de um par de tênis, tão mais confortável. Mas quando vi, estava enfiando nos pés um salto alto que você aprovaria. Por que você está tão arrumada?, amigos me perguntaram. Eu respondia com a metade de um sorriso secreto. Essa data era só nossa.
Ailce, aconteceu muito nesse ano. Um pouco mais até do que minha sanidade era capaz de suportar. Você sabe, a vida é sempre mais faminta do que supomos. Logo que a conheci, eu descobri que a narrativa da sua história seria a reportagem mais difícil da minha trajetória. Como fazer uma reportagem cujo fim era a sua morte? Só foi possível porque aprendemos a amar uma a outra. Você, a personagem de uma vida. Eu, a narradora de uma morte. Você morreu e eu contei a sua história. Apalpei cada palavra na busca daquelas que dessem a dimensão real de sua passagem pelo mundo. Como contadora de histórias reais, sempre que escrevo meu maior medo é reduzir a vida de alguém. Com você, essa preocupação pesava ainda mais sobre meus ombros doloridos, já que você nunca leria a escritura de sua vida. Eu precisava merecer em cada linha o poder amoroso que você tinha me dado.
Você acreditava em Deus, embora tenha brigado com ele em alguns momentos. Brigava porque acreditava. E porque não entendia como ele fora capaz de deixá-la morrer quando você finalmente planejara viver. Quando você havia jogado o relógio fora e dançava e viajava, os olhos bem abertos para não perder nada, devorando o ar em grandes bocados como se ele fosse acabar de repente. Espero que você esteja no lugar para onde acreditava ir. Eu, que sou bem mais cética, de algum jeito armei dentro de mim a convicção de que você leu meu texto e se reconheceu. Não há como saber se é uma fantasia que precisei criar. Só por essa vez, abracei o mistério sem questionar.
O que eu não adivinhava, Ailce, era que o luto por você seria tão prolongado. Eu sempre soube que não entramos na vida do outro impunemente. Sempre acreditei que uma reportagem só acontece, de verdade, quando transforma a vida do personagem e do narrador. Eu compreendia que ao entrar na sua vida você faria parte da minha para sempre. Ao contar sua história você estaria na minha. Mas eu não adivinhava que doeria tanto – e por tanto tempo.
Depois que você morreu, um caminhão atingiu o carro em que eu viajava, em seguida sofri um assalto com tiros e duas pessoas queridas receberam o diagnóstico de câncer. Em janeiro, perdi alguém que também amava, pela mesma doença. Em seguida, alguém que amo precisou me deixar. Seis meses depois de você morrer, eu não conseguia mais comer nem dormir. Perdi oito quilos. Eu estava encharcada de morte. Do fundo da minha fragilidade exposta, eu buscava sinais de que a vida persistia em algum canto. Mas era afogada pela névoa espessa dos tantos fins e quase-fins.
Em abril, retalhos de sol começaram a aparecer aqui e ali. E eu voltei a dormir uma noite inteira sem remédios. Eu havia entendido a grande lição que sua vida tinha me dado. Tinha compreendido o que sempre soube em teoria. Meses antes de conhecer você eu tive uma profunda experiência de meditação, em outra reportagem. A partir dela, comecei a viver a experiência, ao mesmo tempo brutal e libertadora, de que na vida só há uma certeza: a de que não temos nenhum controle. Mas essa, me parece, é a lição mais difícil de aprender. Pode levar uma existência inteira para entendermos a que talvez seja a maior de todas as verdades humanas. Ou podemos morrer sem alcançar a essência da matéria de que somos feitos.
A morte é essa falta de controle levada à máxima radicalidade. Qualquer pretensão de controle é ilusão. A vida é risco. Não há nenhuma garantia, como você aprendeu de forma tão dura. Apavorada com a doença, o acidente, o assalto, o abandono, a morte de quem amava, me parecia impossível dormir. Se acordada, vigilante, tudo isso acontecia à minha revelia, como eu poderia dormir? Toda vez que saía de casa me sentia na iminência de uma catástrofe.
A partir da sua morte, em seis meses todos os pesadelos de quem vive se materializaram em mim como vida vivida. Tomada de desespero, eu me agarrava a uma das tantas imagens famosas de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Em alguns momentos dessa queda brutal no precipício da verdade, acho que até a coragem me faltou. Mas um dia, depois de tantas ilusões arrancadas de minhas entranhas como pedaços de onde brotava sangue vivo, eu finalmente entendi. A falta de controle sobre o vivido não é uma maldição. Ao contrário, ela nos liberta. Se não ficamos perdendo tempo tentando antecipar e planejar cada passo, podemos nos dedicar apenas a viver. Sem postergar, sem adiar, sem deixar para depois. Se é impossível controlar, para que gastar tempo tentando? O mais sensato é enfiar o pé no mundo, sabendo que vamos nos lambuzar. É a incerteza do que nos espera na próxima esquina o encanto da vida.
Analisei então, Ailce, os grandes e pequenos momentos da minha trajetória e descobri que os melhores capítulos haviam sido os inesperados, não os planejados. A filha que nasceu aos 15 anos, numa gravidez adolescente que tantos viram como tragédia, o professor que me mostrou que ser repórter era a melhor profissão do mundo quando eu já tinha decidido seguir outra profissão, o grande amor que apareceu numa festa que eu pretendia não ir porque estava com sono. Minhas melhores reportagens aconteceram quando tudo parecia dar errado. As histórias mais fascinantes que contei foram aquelas em que ouvi algo totalmente diferente do previsto. Se nos fechamos para o imprevisível, como a vida poderia ser menos do que um tédio? É o que ainda não sabemos, o que está para acontecer, que contém o germe da vida.
Quantas vezes não percebemos, depois de algum tempo, que a suposta catástrofe se revelou o melhor que poderia ter nos acontecido? Como a demissão de um emprego que detestávamos, mas achávamos que era preciso manter porque nos garantia segurança. O casamento que nos aniquilava, mas que pensávamos ter de segurar porque era garantido. A viagem de férias para o mesmo lugar para não nos arriscar nem mesmo à possibilidade de algo novo acontecer. Todas aquelas coisas que soam seguras, mas que matam nosso desejo.
O que aprendi com sua vida e sua morte, Ailce, é que a segurança não é uma bênção, é um perigo. Ter maturidade, tornar-se adulto, não é, como tantos dizem, acatar o manual, seguir o rebanho, fugir do risco. Ao contrário. A sabedoria é abraçar o risco, aceitar a impossibilidade de controlar a vida como possibilidade, compreender que só o inesperado pode nos levar a algum lugar. O planejado é o território do previsível, se já sabemos o que vai acontecer, qual é o sentido? O que ganhamos indo sempre ao mesmo lugar, do mesmo jeito, evitando qualquer surpresa? O melhor do humano é a capacidade de se espantar. É pelo espanto que tudo se inicia.
Na semana que passou, quando um tempo inconsciente assinalou dentro de mim o primeiro ano de sua morte, eu atendi ao chamado de uma reportagem daquelas impossíveis de prever o quanto vai exigir de mim. Bati na porta de uma vida e entrei num mundo que vai me revirar pelo avesso. Desde que vivi com você a sua morte, minha alma em carne viva tocava a dor do outro e recuava. Dava os primeiros passos e voltava para trás. Dentro de mim, as cicatrizes ainda eram frágeis e se abriam ao primeiro toque. No primeiro sinal de sangue, eu corria.
Precisei de muito mais tempo do que imaginava para viver meu luto por você, para aceitar a sua morte e todo o imponderável da minha vida que ela continha. Para entender, de verdade, a frase que você me disse no nosso primeiro encontro: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.
Algo se libertou nessa semana dentro de mim. Você é parte da minha história, vive dentro de mim como de todas as pessoas que a amaram, nas células de todas as crianças que salvou da desnutrição. Mas agora vou me deixar viver – e deixar você partir. Parto também eu para todas as vidas possíveis que me esperam. De salto alto e batom vermelho, torcendo pelo desconhecido que me aguarda na virada de cada uma das esquinas do mundo.
Obrigada. Adeus.
ELIANE BRUM
Repórter especial de ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo.
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