Apesar de tocar a morte no texto que reproduzo abaixo, Eliane Brum também fala da vida. ( A reportagem é de agosto de 2008)
Uma verdadeira aula: antes de ser repórter é preciso ser humano!
A mulher que alimentava
ÉPOCA acompanhou os últimos 115 dias da vida da merendeira Ailce de Oliveira Souza, morta há um mês
Eliane Brum e Marcelo Min (fotos)
SEM TEMPO
"É tão estranho”, ela diz. “Passei a vida inteira batendo ponto, com horário pra tudo. Quando me aposentei, arranquei o relógio do pulso e joguei fora. Finalmente eu seria livre. Aí apareceu essa doença. Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.
Ela está intrigada com essa traição da vida. Sua expressão é de perplexidade. Ailce de Oliveira Souza não é uma filósofa, é uma merendeira de escola. Toda sua vida havia sido de uma concretude às vezes brutal. E agora a morte chegava exigindo metáforas.
Lá fora faz sol, e os vizinhos vivem na primeira parte do poema de Manuel Bandeira. Quando o enterro passou/Os homens que se achavam no café/Tiraram o chapéu maquinalmente/Saudavam o morto distraídos/Estavam todos voltados para a vida/Absortos na vida/Confiantes na vida. Lá dentro, sentadas uma diante da outra, eu e ela vivemos o segundo ato. Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado/Olhando o esquife longamente/Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/Que a vida é traição.
Ailce nunca deixou de se sentir traída por “essa doença”, como se expressa na maior parte das vezes, ou “o tumor”. Não pronuncia a palavra câncer. Quando nos conhecemos, em 26 de março, faz quase um ano que sua pele amarelara e ela se enchera de náuseas. Ailce se revolta contra Deus. É dele a traição.
Seu câncer é uma pedra no meio do caminho das vias biliares. O tumor obstrui a passagem e, sem ter por onde escoar, a bile é lançada no sangue, e a deixa inteira amarela. Quando ganha essa cor solar, Ailce ainda não tem 66 anos. E acredita viver o melhor tempo de sua vida. “Sem filhos, sem marido, aposentada, livre”, diz. Ela planeja conhecer as obras de Aleijadinho, nas cidades históricas de Minas Gerais, e a Espanha dos filmes de Sarita Montiel. Quando a paisagem passa veloz pela janela do ônibus, sente que está indo para um lugar que sempre quis, não importa o destino. “Você já reparou como a gente muda quando viaja? Parece que me liberto de tudo”.
Ailce anda de ônibus por todo lado, dança em bailes da terceira idade, vive um romance com um homem mais jovem. “Você acredita que, quanto mais eu danço, mais tenho vontade de dançar?” Ela dança sozinha pela liberdade de rodopiar pelo salão sem que ninguém a conduza. Sempre quis conduzir ela mesma sua vida. Escolhe seus passos no salão de baile enquanto suas células a traem no silêncio de seu corpo.
Se câncer é a palavra que não diz, liberdade é a palavra que repete. Ailce está presa, literalmente. Sua vida depende de duas mangueiras fincadas dentro dela. Elas drenam a bile para fora de seu corpo. O líquido amarelo escoa em dois recipientes de plástico que ela carrega numa sacola de supermercado nas andanças dentro de casa, numa bolsa decorada com as princesas da Disney quando passeia. Um dia um segurança olha feio para sua bolsa achando que ela está furtando produtos da prateleira. E devagar Ailce vai deixando de sair. Desliga a música dentro de casa. E não dança mais.
Estar presa a horroriza. Passou a vida esperneando para escapar de uma prisão metafórica. E agora está amarrada não aos fios invisíveis que a ligam às convenções do mundo, como a todos nós, mas às duas mangueiras de material sintético que drenam o rio poluído de seu interior. “A gente não vale nada. Olha o que sai de mim”.
Quando entrou na sala de cirurgia, achava que faria apenas um exame complicado. “Lembro que o médico cantava pra me acalmar. Não lembro a música. Eu dormi com a anestesia e quando voltei estava numa maca, no corredor. Eu sentia um frio muito grande. Tremia. Vi os drenos e descobri que estava presa”.
Ela logo descobre que sou um terceiro fio na vida dela. Ela nunca tinha falado muito de si mesma. Desse dreno de palavras ela gosta. “A gente fica guardando coisas por toda a vida. Quando eu falo, parece que elas vão se soltando dentro de mim. Me liberto”.
Ailce é uma mulher comum. Nunca pensou que sua vida dá um romance. Nem mesmo uma reportagem. Ela não alcançou o Pico do Everest, nem desvendou a espiral do DNA ou compôs uma sinfonia. Também não queimou sutiã em praça pública. Ailce viveu.
Na narrativa de sua história, ela começa a decifrar pequenas singularidades despercebidas numa existência em que o tempo foi devorado em turnos de trabalho. Ailce percebe que não há como dar sentido à morte, mas ela pode dar sentido à vida. Só assim poderá suportar a superfície fria de um fim que já toca com as mãos. Para viver tão perto da morte, ela precisa adivinhar a tessitura da vida. Do contrário, só lhe restam aquelas mangueiras sintéticas.
Ailce sempre desejou se “libertar” e, como muitos de nós, nunca conseguiu definir muito bem de quê. “Eu gosto de ir pra frente”, diz. Descobre então que terá de enfrentar não a Medicina, mas a Poesia: Temos, todos que vivemos/Uma vida que é vivida/E outra vida que é pensada/E a única vida que temos é essa que é dividida/Entre a verdadeira e a errada.
Intuitivamente ela sabe que sua sanidade depende de enfrentar o caos da vida, mais do que o da morte, que é só um ponto final em geral improvisado. E então, com esforço e não sem sofrimento, ela poderá se reconciliar com os pontos soltos, os padrões interrompidos, as costuras tortas da trama do vivido. Para ela, o mais difícil é aceitar que alguns bordados ficarão por fazer. Ou, pior, serão tecidos sem ela.
Ela é a quarta filha de nove, a penúltima com o nome iniciando por “a”. Ailton, Amilton, Adailton, Ailce... “Eu sentia falta de espaço, de um canto só meu”. No final de sua vida, ela tem não apenas um canto, mas uma casa só sua. Ampla, dois andares, é a encarnação em concreto de seus esforços. Pela casa ela sacrificou muito. Mas quando adoeceu descobriu que a casa transformara-se numa prisão. Agora quer se libertar da casa. Mas, a cada semana, a cada mês, seu espaço encolhe. Primeiro, o portão da rua marca a fronteira de seu mundo. Depois, a porta da frente. Em seguida, seu território é circunscrito ao 2º andar. E, por fim, tudo o que tem é o quarto.
Ailce então fecha a janela na cara do sol e não sai mais da cama. Nessa época, ela descobre que é possível viver na memória. E refaz o itinerário de sua vida. Ela nascera em São Romão, cidadezinha mineira forjada em histórias de sangue. E sua infância cabia num vão entre a largueza do São Francisco e um riacho de nome Escuro, que banhava a fazenda da família. Crescera cercada de água por todos os lados, mas tinha medo de nadar. Seu pai havia sido capitão de porto, delegado de polícia, juiz de paz. Sua mãe fora uma mulher forte, que fugira do primeiro casamento, aos 13 anos, com a pequena Maria pela mão. Mantinha a casa e os filhos asseados, as toalhas bordadas bem alvas, a cozinha mergulhada numa névoa de vapores perfumados.
Essa memória olfativa feita de temperos, toicinho e doçura engendrada nas panelas da mãe acompanhou Ailce por toda a vida. Perto da morte tornam-se mais vivas. Quando as toxinas liberadas pelo tumor envenenam o corpo, e ela enjoa de tudo, lembra o feijão gordo, o pão de queijo, os biscoitos de polvilho. E sua boca castigada é afagada por uma saliva de infância. Ailce, que já não consegue comer, lambuza-se em banquetes de lembranças. Mais tarde, 18 quilos mais magra, e já sem forças para andar até o banheiro, ela ainda suspira por uma broa de dona Santa.
Ailce deixou a casa dos pais aos 18 anos. Diante de suas ânsias de mulher jovem, a cidade criara paredes. “Eu queria conhecer coisas novas”, diz. “Ser independente”. Escorregou no mapa e desembarcou em Guarulhos, São Paulo, na casa de um irmão. E de novo sentiu-se confinada. Mudara de geografia, mas não de sina, e para ela os 60 não foram anos loucos. Costureira, moça de fábrica, entre linhas, agulhas e bobinas teve as primeiras revelações sobre sexo, quando ao voltar da lua-de-mel uma colega relatou que não só doía como jorrava um líquido branco do membro do homem. Ailce arquivou a informação para não fazer cara de surpresa quando sua hora chegasse.
Nessa época, Ailce se apaixonou por um rapaz de olhos verdes, e ela, que sempre foi muito prática, deu para devaneios. Espremida na cama de armar que dividia com uma amiga, falava de amor e ria à toa. No sábado, anunciava: “Vamos ao baile de vestido novo”. Costurava então uma saia bem rodada para cada uma, orgulhosa da cintura de 54 centímetros. Muito mais tarde, Ailce vai esquecer os fios sintéticos fincados em seu fígado ao lembrar de seu vestido de organza azul. Mas o moço bonito não queria saber de casamento, e Ailce chaveou o coração.
Desde aqueles dias, Ailce jamais deixou de sair de casa impecável. “Ailce vem à consulta muito bonita, cabelos pintados, brincos, salto alto”, escreve a médica Maria Goretti Maciel no prontuário da Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, em 2 de abril. Mais de uma vez Ailce entra no hospital com as pernas bambas, mas sobre saltos. E, quando ainda não pronuncia a palavra morte, usa a metáfora “cair”. “Eu não aceito cair”.
"Você acredita que, quanto mais eu danço, mais sinto vontade de dançar?"
Aos 23 anos, ela tomou uma decisão pragmática. Casou-se com um operário chamado Jaime, rapaz alinhado que não botava a cabeça fora de casa sem brilhantina, sem um lustro nos sapatos. “Eu queria ter uma casa só minha”, diz Ailce. “Ele era honesto, trabalhador, andava de terno e gravata, tinha uma família boa. Casei”. Ailce não adivinhou que um moço tão distinto teria ganas de beber além da conta. Nem que uma parte do futuro seria gasta nas tribulações de mulher de alcoólatra. No caso dela sina ainda mais triste porque nada tinha da originalidade que planejara para si. Assinou o livro do cartório convencida de que romance era incompatível com a vida adulta. E essa foi sua primeira capitulação diante de seus sonhos.
DO FIM
Ailce no quintal de sua casa, em abril, um ano depois dos primeiros sintomas do câncer
Esse marido “era da raça de espanhol, tinha sangue quente”. E esse fogo acabou incinerando Ailce, que já casou com o primeiro filho aconchegado numa curva da barriga. Só mais tarde ela soube que havia um nome para o que sentiu quando Marcos nasceu de cesariana. “Eu não queria aquela vida, queria uma vida diferente”, ela diz. “Então rejeitei”. Ailce chorou, envergonhada de seus pensamentos. Só décadas depois, perdoou a si mesma ao descobrir que tivera uma depressão pós-parto, comum a muitas mulheres, e não uma crise existencial em que questionava o que fora feito de suas grandes esperanças. Quando as primeiras semanas viraram meses, foi tomada por um amor tão grande por aquele filho que, perto do fim, ainda acredita que ninguém cuida tão bem dele quanto ela.
Quando a segunda vida pediu passagem dentro dela, Ailce chorou de novo. O marido bebera demais e escalara a cama para deitar-se com ela. Ailce agarrou um cobertor e enrolou-se no chão. Sentia-se presa numa teia que não planejara tecer. “Chorei. Não era essa vida que eu queria pra mim”, diz. “Pensei então que meu bebê poderia ser uma menina e me acalmei”. Luciane nasceu miúda, alérgica a leite e com o gênio forte das mulheres da família. Menina estranha, desde os 7 anos escondia-se na cama da mãe para não ser assaltada por coisas do outro mundo.
Esses dois filhos dão a Ailce as duas pontas com as quais ela amarra o final de sua vida. Marcos, funcionário de escola como ela, cuida das feridas do corpo. Aos 42 anos, é um homem quieto, que tranca as emoções em algum lugar entre o coração e o estômago. Ao entrar numa sala, ocupa um canto. Quando a mãe adoece, ele aprende a fazer os curativos e a limpar os drenos, administra seus remédios e prepara o café-da-manhã. Quando ela se torna mais fraca, passa a lhe dar banho. “Não fica com vergonha da mãe”, diz Ailce. “A mãe também deu muito banho em você”. É esse filho silencioso, com a coragem de enfrentar a carne da mãe, que transforma o horror da doença num carinho cotidiano. Pelo toque, ele torna possível para Ailce suportar um corpo em que a bile escorre no lado externo.
Ao igualar-se a um corpo infantil para vencer a interdição entre mãe e filho, Ailce assinala a perda do feminino nela. “O tumor me tirou tudo. Eu perdi peito, bunda, cintura, tudo”, diz. Ailce agora se preocupa cada vez menos com a nudez de um corpo que a trai de todas as maneiras possíveis. E que parece pertencer somente à doença.
A figura miúda de Luciane está sempre no centro. Como a mãe, ela encontra sentido na ação. Depois de crescida, apaziguou-se com o sobrenatural virando mãe-de-santo no candomblé. Luciane vasculhou a história da família e descobriu que a avó materna era cigana. No Rio de Janeiro, onde vive com o marido, Jorge, faz uma festa anual em homenagem a uma ancestral chamada Carmen que fala espanhol pela sua boca. Ailce aceita o mistério. E ela, que nunca aprendeu espanhol, conversa com a cigana como uma velha amiga.
Luciane dá à mãe essa dimensão mística da vida. Pelas mãos dessa filha ela encontra significados para um estar no mundo que para ela foi sempre tão concreto. Luciane lhe dá uma história que avança além da sua, e lhe dá um lugar nessa história. Perto do fim, sua pequena vida faz sentido numa trama maior. A cada novembro é ela quem acende a fogueira da ancestralidade, vestindo saias coloridas, e sua figura se reveste de uma solenidade que resiste ao comezinho de uma vida de cartão de ponto. Depois, ela rodopia ao som do violino cigano e ali, finalmente, apalpa com os pés no ar uma liberdade que até então ela só pressentira. E, por ter um passado antes do nascimento, terá um futuro depois da morte.
Do meu lugar de observadora de um quadro familiar, ora na cena, ora fora dela, me pergunto se esses filhos, cada um a seu modo, compreendem o tamanho do que dão à mãe. Ailce precisa do que cada um deles pode dar, até o fim.
Ela só descobriu o tumor quando foi enviada para a Enfermaria de Cuidados Paliativos, depois de enfrentar sete meses de tratamento em outro setor do hospital. Ailce suspeitava do diagnóstico, mas preferia não ter certeza. Na Enfermaria, a verdade a encurrala. “Antes, os médicos falavam lá na língua deles. Eu escutava a palavra tumor, mas não perguntava. No Paliativos, me contaram que eu tinha um tumor num lugar que não podia ser mexido. Fizeram um desenho. Eu pensei que faria quimioterapia e ficaria boa. Então disseram que eu não poderia fazer. Me revoltei. Achei que Deus não existia. Eu sempre quis ir além e agora não posso mais ir a lugar algum”.
Ailce conta – e imediatamente “esquece” o diagnóstico. Nas visitas seguintes, ela me testa: “Acho que não tem nada dentro de mim”. Ela deseja muito que eu confirme seu pensamento mágico. Nessas horas, eu sinto dor na garganta, pelas palavras que não posso pronunciar, mas que gostaria muito de dizer.
Incapaz de enfrentar meu silêncio, ela contemporiza. “Ainda bem que eu não tenho dor”. Lourdes, que limpa a casa, cozinha e cuida dela, a socorre: “Você não tem câncer. Eu tinha uma tia com câncer e ela gritava de dor. E tinha um cheiro tão horrível que ninguém chegava perto. Você não tem cheiro nenhum”. São duas mulheres sozinhas na casa – e uma delas tem uma sentença de morte. Elas me observam com o canto do olho, temerosas de que eu desmanche com palavras o frágil equilíbrio de seu milagre.
É início de abril, e Ailce está feliz porque o apetite voltou. É resultado do tratamento paliativo, que ameniza os sintomas. “Repeti o prato na hora do almoço”, anuncia. Ailce mima suas orquídeas, conversa com as plantas, comparece às festas de família, quer comprar roupas novas. Suspira por atos banais, mas que agora se enchem de raridades: um banho de chuveiro sem preocupação com os fios; dormir de bruços, que já não pode mais. Ailce vive dias ensolarados. Está comendo, está curada.
E eu também preciso comer. Ela não permite que eu saia de sua casa sem antes repetir o bolo. Criada no interior, esse é um ritual que compreendo. Só mais tarde percebo que, para Ailce, oferecer comida é a chave de uma vida. Ela tornou-se merendeira de escola depois de passar Por 27 anos ela alimentou num concurso público com nota 9,5. crianças carentes. Na segunda-feira, acolhia-as com uma caneca de leite, para que tivessem forças de entrar na sala de aula. Era dela a missão de mantê-las vivas, era ela quem operava o milagre de fazer crianças quase desmaiadas correr pelo pátio.
Ailce adorava isso. Seu pai queria pagar seus estudos de professora, ela não quis. Queria ser enfermeira, não conseguiu. Encher a barriga de crianças famintas emprestava grandeza a sua vida. “Nunca cheguei atrasada, trabalhava doente porque precisavam de mim. Eu fazia sopa, leite com cacau, sagu. Às vezes, fazia seis caldeirões de 40 litros. E as crianças comiam tudo, com tanto gosto. Ficavam sábado e domingo sem se alimentar e na segunda-feira muitas desmaiavam. Eu não podia fazer nada fora da escola, mas dentro elas comiam à vontade”.
Antes de ser enviada para a Enfermaria de Cuidados Paliativos, um médico, sem coragem de contar a ela a verdade, lhe disse: “Você precisa comer bastante para ganhar peso. Então, quando estiver mais forte, vamos operá-la”. Ele não sabe o que fez. Comer, ficar forte e melhorar é o mantra de Ailce. Entre um médico que lhe acenou com a possibilidade de cura e todos os outros que só têm a verdade para dar, é óbvio que ela acredita no primeiro.
Em meados de maio, Ailce piora. Os enjôos retornam, a comida não passa na garganta. A equipe de visita domiciliar do Serviço de Cuidados Paliativos é cada vez mais assídua. Desentope os drenos, faz curativos, resolve o que é possível para que Ailce não gaste seus dias no hospital. Os medicamentos são substituídos em consultas ambulatoriais, mas ela está numa fase crítica. O desespero por não conseguir comer a consome, pede às médicas que lhe dêem remédio “para abrir o apetite”. Mas nenhuma comida é preparada do jeito que ela instruiu, não há tempero que não se torne amargo em sua boca. Culpa então a mulher que ocupa seu lugar na cozinha por não conseguir fazer por ela o que passou a vida fazendo pelas crianças desmaiadas. Na intimidade da casa é um tempo de grandes dramas para as duas mulheres. Ailce está num lugar insuportável: ela, que sempre alimentou a todos, morrerá porque não consegue comer.
Ailce mede 1,40 metro, mas briga como se tivesse tamanho de jogadora de vôlei. Em junho, é difícil para ela botar uma perna na frente da outra. Mas caminha. Tremendo, cheia de fúria. “Tira a mão do meu braço que eu ando sozinha”, diz. “Mas a senhora cai”, preocupa-se a filha. “Não caio”.A filha tenta lhe dar café. Ela fecha a boca. “Eu mesma tenho de tomar”. Derruba, mas é ela quem segura a xícara. Pergunto porque isso é tão importante. “Eu tenho de ser eu”, diz ela.
Nessa época, Ailce beira o impossível: tinha “esquecido” a doença, mas a doença não a esquecera. Culpa os médicos porque não vê “progresso”. A família cogita consultar outros profissionais. Em seguida, desiste. Teme o que ouvirá no final da consulta.
Então a tempestade chegou. Na manhã de 19 de junho, depois de uma noite de sonhos desencontrados, Ailce anuncia que quer morrer. Não acredito que queira. O que está dizendo, pelo avesso, é que quer viver. Do jeito dela, pede ajuda. Nos encontramos na lanchonete do hospital. Ela tem os olhos cheios de lágrimas, as mãos tremem. Duas desconhecidas lhe falam de Deus. Invocam o “deus do impossível”.
À espera da consulta no ambulatório, Ailce revolta-se: “Quero uma definição. Não vejo melhora. Por que não amarram isso dentro de mim?”. Ailce não só esquecera o que os médicos lhe explicaram muito tempo antes, como esquecera também o que havia contado a mim menos de dois meses atrás. Pela primeira vez, interfiro: “Fale tudo o que está sentindo nessa consulta. Tire todas as suas dúvidas”.
"A história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim?"
A médica abraça Ailce com carinho. O sol atravessa a janela e bate diretamente nas duas mulheres sentadas uma diante da outra, iluminadas como num palco. Ailce começa: “Eu não sei o que eu tenho”. Goretti Maciel responde: “Você não lembra a nossa primeira conversa?”. Ailce não lembra. “Eu lhe contei que tinha uma pedra no meio do caminho.” Ailce ouve a explicação de novo – e de novo seus olhos acompanham a mão da médica riscando no papel a arquitetura da morte dentro dela. Ela diz: “Mas não dá para pular aqui por cima e juntar aqui?”. Goretti diz: “Infelizmente não dá para fazer um viaduto”. Dessa vez, Ailce não recua: “Então não tem cura? Então isso vai até quando...”. E interrompe a frase.
Toca o celular da médica. A música é a trilha do filme Missão: Impossível. Ela desliga.
“Paliativo vem de palium, que quer dizer manto”, diz a médica. “É o que a gente faz aqui: jogamos um manto sobre a doença. O tumor vai lançando toxinas pelo corpo e isso provoca sintomas. Os medicamentos disfarçam os sintomas. Mas um dia não vamos mais conseguir amenizá-los. Quando esse dia chegar, meu compromisso é que a gente nunca vai abandoná-la. Vamos cuidar de você até o fim.”
Ailce deixa o consultório ereta, os olhos secos. Está de salto alto. Dessa vez, se apóia no meu braço. Mas ainda é ela: “Será que se eu engordasse um pouco não daria para fazer cirurgia?”. Desta vez, me sinto autorizada a falar: “Ouvi tudo o que a médica disse. Não importa se a senhora está gorda ou magra. Não é culpa sua. O tumor é que está num lugar do qual não pode ser retirado”. Ela então me olha com a esquina do olho e diz: “Acho que já tinham me contado. Mas não dá pra lembrar de tudo”.
Em julho, Ailce não sai mais da cama, nem mesmo abre a janela. Mergulhada numa escuridão que não depende da rotação do planeta, ela prefere deixar o sol do lado de fora. Usa fraldas porque não alcança o banheiro, tem frio mesmo quando faz calor. Mas ainda conta histórias e não me deixa sair de sua casa sem repetir o bolo.
Na segunda-feira 14 de julho, seu quarto tem cheiro de morte. E seu corpo parece menor sobre a cama. “Meu tempo está acabando”, ela diz. E eu sei que é verdade porque ela parou de brigar. A revolta se extingue dentro dela, a voz se suaviza. Quando ela toma água, ainda segurando o copo, o gosto é amargo. Ela sempre temera a dor, e a dor havia chegado. “Estou ferida por dentro. Sinto cheiro de podre.”
Ailce descreve todas as mortes da família. Do pai, que morreu em casa, da mãe, no hospital, do marido, de doença de Chagas, do irmão, num acidente. Depois desse inventário do fim, ela conclui: “Agora sou eu que estou no finzinho”.
À noite, a dor aumenta. Ailce pede à filha que chame o Preto Velho. Quando a entidade que assume muitos nomes nas religiões afro-brasileiras se manifesta, pela boca de Luciane, Ailce pede: “Me leva. Nada mais me prende neste mundo”. O Preto Velho brinca com ela. “Não é tão fácil assim, minha filha. No céu tem fila. Vou ver se consigo uma vaguinha para você cuidar das crianças”. Nesse contrato místico, PretoVelho promete a Ailce que a levará ainda naquela semana.
Em 14 de julho, Ailce percebeu que seu tempo tinha acabado. No dia seguinte, foi levada ao Hospital do Servidor Público Estadual para morrer sem dor na Enfermaria de Cuidados Paliativos.
Pensei muito em como descrever essa noite. Cheguei à conclusão que a morte é dela. Ailce tem uma fé bem ecumênica. Desde que adoecera, ela nunca recusou ajuda espiritual. Toda semana recebia hóstia de voluntárias católicas, e sempre abriu a porta para padre e pastor. Mas é quem ela chama de Preto Velho que a conforta na noite mais longa de sua vida. “Eu vou, mas volto”, diz. “Vou segurar sua mão e preparar um Nós estamos velhinhos. Empresto caminho de lírios pra você passar. minha bengala e meu banquinho. Quando eu cansar, você levanta e eu sento. Quando você cansar, eu levanto e você senta. Seu corpo está doente, sua alma está limpa. Você é uma flor”.
Na manhã seguinte, Ailce despede-se de sua casa. Desce a escada carregada, seus pés estão descalços e não mais encostam no chão. Lourdes soluça. E promete fechar bem a porta. A papagaia já não come. E o cachorro Dunga, chorando, se esconde dentro da casinha. Na despedida da mulher que a habitava, a casa parece agonizar.
No hospital, Ailce me pede que arranque suas meias do pé. “Não gosto de me sentir presa”, afirma. Ela está morrendo e suas unhas estão pintadas de cor-de-rosa. Pergunta: “A história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim?”. Eu me acovardo: “Não sei”. Seus olhos amarelos me perfuram. “Não sabe?” Eu minto: “Acho que não falta mais nada”. Ambas sabemos que falta a morte.
Eu preciso dizer: “E é uma vida bonita”. Ela pede confirmação: “Você acha?”. Eu asseguro: “A senhora brigou pelo que queria, criou seus filhos, construiu sua casa, matou a fome de tantas crianças. A senhora viveu”. Ela conclui: “E nunca pedi nada para ninguém”.
Os remédios fazem efeito e ela escorrega para um sono tranqüilo. A médica Veruska Hatanaka esforça-se para que ela não sinta dor, mas que consiga se despedir. É uma arquitetura química delicada. Luciane tem 40 graus de febre, Marcos traz a mulher para se reconciliar com a sogra. Ailce pergunta pelo único neto, Ramom. Às vezes, acorda para pedir água e faz questão de segurar o copo. “A água está mais doce agora”, diz. Ailce já não come. E isso não mais a machuca. Mas, ao abrir os olhos, tarde da noite, ela pergunta se eu comi.
Na quarta e na quinta-feira, Ailce quase só dorme. Ao redor dela se alternam os irmãos, os vizinhos, os amigos. Eles contam histórias da vida dela. Seu irmão caçula coloca uma mão grande sobre seu rosto e chora: “Eu te amo muito. Você quer que eu traga um café para você?”. Ela abre os olhos, balbucia: “Eu também te amo”. E volta a dormir. “A gente dormia na mesma cama de armar, na cozinha”, conta uma amiga. “Eu namorava um rapaz que era a cara do Elvis Presley e ela namorava o Maurício, um loiro de olhos claros”. Ri e chora. “Meu pai era muito apaixonado por ela”, diz Luciane.
Uma fotografia desse momento mostra Ailce na cama e a família ao redor. Há um movimento em cada um deles, nela nenhum. Eles falam dela, mas ela não está lá. Ailce se retira do palco, e a vida de todos seguirá sem ela. Fragmentos de sua vida esvoaçam a seu redor em forma de lembranças enquanto ela morre. Mas Ailce ainda escuta. Abre os olhos sempre que alguém pronuncia o nome do neto. E, quando ficamos sozinhas, eu digo: “Muito obrigada por ter me contado sua história. Eu vou escrever uma história linda sobre sua vida. E nunca vou me esquecer de você”. Percebo então que ninguém confiara tanto em mim. Muitas vezes eu fui a única testemunha de sua vida. Eu escreveria sua história, e ela estaria morta.
Na sexta-feira 18 de julho, Ailce desperta depois do banho. Está inquieta. É difícil entender o que diz. Pede água, mas agora é preciso umedecer um pedaço de gaze e colocar entre seus lábios. Já não há movimento nos drenos, seu corpo está parando de funcionar. Ailce se contorce, começa a arrancar a roupa. Fica nua. No final da manhã, a médica Juliana Barros a liberta dos fios sintéticos de sua vida, agora inúteis. Ailce finalmente está livre.
Quando os filhos chegam, Ailce os reconhece. Ela esperava por eles. Então volta a dormir. Às 15h50 ela abre os olhos de repente. Está lúcida. Enquanto seus olhos erram pelo quarto, Luciane diz: “Vamos dançar, mãe. Vamos botar nossa roupa pra gente dançar. A senhora está linda vestida de cigana. Já curou, mãe. Não tenha medo, eu estou segurando a sua mão. Vou lhe ajudar a atravessar. Está todo mundo esperando pela senhora. Eu te amo tanto, mãe. Muito obrigada por tudo”.
A filha desenha com pétalas brancas o contorno do corpo da mãe. O olhar de Ailce é de infinita tristeza. Seus olhos vagam pelo quarto e se cravam na câmera. E sua respiração apaga devagar.
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