Sob as ruínas da padaria do avô português, uma das primeiras de Icoaraci, o bangalô do diretor teatral Salustiano Vilhena, 66, emerge das entranhas do passado e teima em sobreviver à passagem dos anos e ao avanço da modernidade.
A placa em madeira embaixo da caixa de correio confirma o endereço: Salustiano. Estamos diante da casa de Mestre Salu, como seus alunos de francês e discípulos do teatro o chamam. Não é uma casa simplesmente, mas um santuário de artes que conhecemos ao passar pelo portão de ferro, número 132 da travessa Itaboraí.
Evita, Maylon e Caco são os que primeiro recebem os visitantes. 'Uma homenagem a Evita Perón', diz Salustiano. Os três cachorros fazem companhia a um dos fundadores do grupo 'Gruta de Teatro' e atual diretor do 'Má Companhia', ambos surgidos em Icoaraci.
Entra-se com cuidado no lugar, absorvendo o cheiro das plantas, o silêncio que paira no ar. O clima muda. O tempo também. Talvez seja pelo poço desativado ou pela imensidão do quintal, tomado por verde, algo cada vez mais incomum nas atuais construções da 'Vila Sorriso'. 'Li numa matéria que Icoaraci está sofrendo o processo da família canguru. Os filhos casam e não saem de casa, constroem as suas no quintal da família e vão tomando conta do quintal e derrubando as plantas', comenta.
Varandas circundam toda a casa. Na parte da frente, uma longa mesa de madeira, daquelas que se encontram na casa de nossos avós, em algum interior do Pará. 'Os meninos (sobrinhos, os dois filhos adotivos e a irmã) vêm aqui tomar café à tardinha'. No canto esquerdo da mesma varanda, duas cadeiras de madeira ficam entre um pé de máquina enferrujado com tampo de mármore, fazendo as vezes de mesa. Há pés, aliás, por toda a parte. No pedal, um ferro de passar roupa a carvão, relíquia dos costumes e hábitos dos séculos XIX e XX, sinalizando que o passado ainda vive ali.
Mestre Salu contempla o antigo. Uma forma de reverência à memória e à história, que ele faz questão de preservar. Duas grandes portas saindo do chão até o teto, na entrada principal da casa, se abrem ao mundo lá fora. São duas peças resgatadas do abandono da sarjeta. Onde todos viam lixo, Salustiano só encontrava arte. 'Essas são portas do primeiro mercado municipal de Icoaraci, tirei da rua, porque quando o mercado foi destruído, eles simplesmente as jogaram fora. Peguei e criei logo utilidade pra elas', relembra. Foi assim com o suporte de abajur, talhado em ferro, na luminária ao lado do sofá. 'Peguei num lixo no Rio de Janeiro, na década de 70. Olhei e pensei: mas, nossa isso vai dar um abajur liiindo, vou levar!', conta.
Um antigo cofre de igreja, todo em madeira, virou suporte para o vaso de plantas da sala de estar. Esse ele ganhou de presente do amigo, o restaurador João Mercês. Muitos objetos da casa, por sinal, são presentes de João, conta o diretor. O ambiente é um mergulho numa outra dimensão. Repleta de recordações de família e viagens, cada peça conta parte da história de Mestre Salu. Parece feita de retalhos, costurados ao longo dos 13 anos que ele a habita. Recortes de viagens, passeios, trabalhos, amizades, heranças de família. O verdadeiro tecido de uma vida. Anjinhos em madeira, tocando música, comprados na Espanha. Máscaras chinesas, africanas, brasileiras e elementos afins, adquiridos em incursões por países como França, Bélgica, Itália, Inglaterra ou presenteados por algum aluno ou amigo. Quadros de artistas, como PP Condurú e Antar Rohit, também decoram uma das paredes da sala.
Três potes de porcelana dispostos entre os sofás da sala para 'Salu' contar novas histórias. 'Esses potes são ingleses e franceses. Era hábito em Belém ter esse tipo de objeto, porque eram enviados para cá, trazendo essências', informa. Hoje, um deles recebe graciosamente dois guarda-chuvas e uma bengala com cabeça de cavalo, comprada numa cidade à beira do Rio Sena, na França.
No andar superior, três grandes cruzes. E apesar da casa ser repleta de imagens sacras, o dono não se diz religioso, apenas admira a beleza artística. No lado esquerdo da sala, no detalhe da escada, santos. De materiais, causas e origens diversas, eles ficam expostos num tipo peculiar de oratório, herança também de gerações da família Vilhena. Aponta para o Santo Menino Jesus de Praga e diz: 'Ele é feito todo em madeira, é do século XVIII, foi minha tia quem me deu. De vez em quando ele sai para participar de uma gincana, mas muito de vez em quando'.
O buffet da avó Maria delimita a fronteira entre salas de estar e jantar. Nele, dois castiçais, tão antigos quanto o cômodo, preservam o tempo. 'Quando comecei a me entender por gente, eles já existiam'. Na cozinha também fica a cristaleira, jogos e mais jogos de xícaras, pires, pratos, copos, garrafas, jarras de porcelana, vidro e cristal. Uns de família, outros de viagens ou simples idas ao comércio do centro da cidade.
Na escada, que leva ao quarto, três faróis de navio chamam atenção. Pendurados nos degraus, foram entregues pelo pai do ator. E eles ainda funcionam. Em sua extensão, quatro máscaras em tamanhos diferentes confirmam se tratar da casa de um artista. 'São as mesmas máscaras, duas grandes e duas pequenas, uma da tragédia e a outra da comédia', ressalta. Entre eles, um sino, um turíbulo e um chocalho de boi. 'Comprei no Maranhão imaginando um belo elemento para alguma montagem. Porque quando compro algo, sempre penso que pode ser utilizado numa peça teatral'.
O bangalô de Salustiano é pequeno. Só quintal e varanda realmente são grandes. No interior da residência, com seus tijolinhos à mostra, há apenas o banheiro, o quarto de hospedes, uma cozinha, as salas de estar e jantar e o quarto do diretor no mezanino. Nos retalhos a costurar o ambiente intimista do local, as portas ficam sempre abertas para quem quiser entrar. Não à toa, elas se espalham por todos os cantos. 'Casa para mim tem de ser agradável, porque afinal passamos a maior parte da nossa vida dentro dela'.
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