Yorranna Oliveira

Achei a imagem aí de cima pesquisando no Google. E ela define perfeitamente um pouco do que eu sou e da proposta do blog: tem de tudo um pouco, e um pouco de quase tudo o que gosto. Aqui você vai encontrar sempre um papo sobre música, cinema, comunicação, literatura, jornalismo, meio ambiente, tecnologia e qualquer outra coisa capaz de me despertar algo e a vontade de compartilhar com vocês. Entrem e divirtam-se!

terça-feira, 23 de junho de 2009

A Bela da Tarde

Luís Alberto Rocha Melo

Séverine, a Belle de Jour, sonha com os olhos abertos. No entanto, caminha pelas ruas com óculos escuros, como a persistir nos sonhos e em uma noite interior. Quando fixa o olhar em algum ponto, o que vê não é necessariamente o que está diante de seus olhos. Há, neste modo particular de ver, uma espécie de cegueira iluminada que nasce da maneira como a personagem vivida por Catherine Deneuve se deixa penetrar pelas imagens. Conscientemente ou não, Séverine descansa o olhar naquilo que está oculto, ou excessivamente aparente: os objetos, as pessoas, as ruas, os parques e o quarto no qual se prostitui falam de outro modo para ela. E para nós, espectadores, é quase mesmo impossível delimitar, sem reduzir, o que são as "imagens reais" e o que são as "imagens criadas" pela imaginação fértil (ou super-receptiva?) de Séverine. Já não há fronteiras, nem mesmo universos paralelos: o cinema é o espaço da desarticulação total do que é "subjetividade" e "realidade concreta". Em Bela da Tarde tudo é movimento, e o que interessa - como num bom filme de ação - é acompanhar os deslocamentos dos personagens (e da câmera que os segue).

Bela da Tarde (1967) é possivelmente o filme mais conhecido de Luis Buñuel. Pertence à fase madura de sua obra, que compreende títulos como Viridiana (1961), O Anjo Exterminador (1962), Diário de Uma Camareira (1964), Simão do Deserto (1965), Tristana (1970), O Discreto Charme da Burguesia (1972), O Fantasma da Liberdade (1974) e Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977). Pertence, portanto, a uma fase na qual se cristalizou um certo "estilo buñueliano", bastante diverso da primeira fase surrealista (Um Cão Andaluz, L'Age D'Or) e dos filmes realizados no México, durante a década de 1950. E poderíamos falar aqui em "estilo buñueliano" como se fala em um estilo "hitchcockiano", ou seja, como uma "marca registrada", o que inclui certo apelo à cumplicidade do espectador, que já sabe o que esperar - ou melhor, no caso de Buñuel, o que não esperar - do filme que irá assistir. A Bela da Tarde, aliás, não deixa de ser um "filme de mistério" (já que mencionamos Hitchcock). O suspense, porém, é de outra ordem: o que nos inquieta não é a fatalidade trágica, mas o acaso. O fio narrativo, de ressonância melodramática, é inteiramente subvertido pela forma como Buñuel sublinha o gesto concreto quando tudo é fantástico; abrir e fechar uma porta ou andar pela rua são atos igualmente carregados de absurdo.

Com a fluidez de um filme de gênero (mistério? melodrama?) e a ambigüidade característica de Buñuel, Bela da Tarde é sobretudo ritmo. Eliminando por completo a música de fundo, o filme se torna ainda mais musical, numa perspectiva próxima a de Robert Bresson, por exemplo. O som, os ruídos, realistas ou não, são sempre elementos que sublinham musicalmente as ações: passos que ecoam em um corredor ou sussurram em tapetes; os sinos de uma igreja ao longe; os cincerros das vacas, os guizos de uma carruagem, os cascos dos cavalos, o miar de um gato, os sons de uma buzina e o ruído dos automóveis. Buñuel se atém ao universo aparente do sensível: a mise-en-scène requer apenas a eficiência do gesto e do enquadramento. O corte não apenas nos faz sair de um lugar (espaço físico) para outro, mas nos transporta para percepções diferentes. Acompanhando a trajetória de Séverine, experimentamos o que é viver com a sensação permanente de uma suspensão temporal.

Filmando desta forma, Buñuel evita o que poderia fazer de A Bela da Tarde um péssimo filme: a construção moralista de personagens psicologizados. De fato, as motivações que levam Séverine a se prostituir (imaginariamente ou não) importam tanto quanto o conteúdo da misteriosa caixinha que o "cliente asiático" leva ao bordel de Anais. Buñuel não se interessa pelo "drama burguês". Prefere filmar os burgueses debatendo-se em seus dramas, da forma mais exterior possível (mesmo que o que vemos represente a subjetividade da protagonista). E é por isto que há tanto humor nos filmes de Buñuel (nem tanto em Bela da Tarde, mas principalmente em trabalhos como Simão do Deserto e O Fantasma da Liberdade). Mais uma vez, o gesto mais comum é tão perverso quanto os mais obscuros fetiches dos clientes do bordel. Pierre (Jean Sorel), o marido de Séverine, e seu sorriso empastelado; Husson (Michel Picolli) e sua polidez sarcástica; todos os tipos que passam pela Belle de Jour - pervertidos ou não - são tão ou mais monstruosos quando aparentam uma pretensa normalidade. O jovem Marcel (Pierre Clementi), o bandido que se apaixona por Séverine, é talvez o único personagem que escapa da galeria dos hipócritas - mas a ele é conferido um destino apropriado aos "personagens de exceção"...

Resolvendo trabalhar pela primeira vez na vida, Séverine decide optar pela mais antiga das profissões. Seu nome de guerra, Bela da Tarde, não somente indica a sua beleza, mas seu horário de trabalho, e a este horário Séverine agarra-se como a única bóia de salvação. Com um nome de guerra, ela termina por nomear seu próprio cotidiano. Mas não é a intenção de Buñuel nos guiar através do "dia-a-dia" de uma "mulher em busca de si mesma". Em A Bela da Tarde nenhum personagem merece o "privilégio da identificação" com o espectador, já que todos são filmados com absoluto rigor por uma câmera que os torna fantasmas de realidades múltiplas. Se Séverine se apresenta como um veículo para nos abandonarmos e nos entregarmos ao devaneio, tanto pior para ela: das duas às cinco da tarde, nós também somos donos da Belle de Jour e dela nos afastamos assim que soam as seis horas e ela se torna Séverine, a mulher frígida de Pierre. Ou melhor: é então que voltamos a observá-la enquanto ela vive seus sonhos ou pesadelos. De olhos bem abertos, que é, de resto, a maneira de se sonhar no cinema.


- Luís Alberto é crítico de cinema do site Contracampo: www.contracampo.com.br

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