Texto: Yorranna Oliveira
Fotos: Gleidosn Gomes e Arquivo Pessoal das entrevistadas.
Era um fim de tarde. Paula entrou primeiro no quartinho da pensão. Saiu uma hora depois. Em seguida, foi Cristina. Depois outras duas meninas e por último Raíssa. Todas tinham o mesmo desejo: ter o corpo mais feminino. As cinco fizeram uma aplicação clandestina de silicone. Elas compartilhavam sonhos e histórias muito parecidos. Eram travestis, pobres, prostitutas, saídas do Norte e Nordeste do país, vivendo ilusões em São Paulo. Naquela tarde de 1994, as cinco também compartilharam a seringa usada na aplicação. O sangue de uma penetrou no corpo das outras. A doença de uma nos destinos de todas. Paula morreu uma semana depois. Ela tinha Aids.
“No início pensei que era o fim do mundo. Aí, depois do pior, eu parei pra pensar e vi que a vida continuava”, diz Raíssa Mota do Nascimento, 33 anos, portadora do vírus HIV e há 16 anos vivendo com Aids.
Raíssa nasceu Raimundo Nonato, em Belém do Pará. Aos três meses de idade a mãe biológica foi presa por tráfico de drogas e Raimundo passou a ser criado por dona Teresinha, vizinha da vila onde moravam no bairro de Fátima. A criança cresceu e lá pelos cinco, seis anos o menino não queria jogar futebol, vestir cueca. Ele queria brincar de boneca, elástico, usar saia, deixar o cabelo crescer. Raimundo foi se descobrindo e aos 11 anos revelou a verdade daquele corpo masculino por fora e feminino na essência. Dona Teresinha aceitou.
“No início pensei que era o fim. Aí, eu vi que a vida continuava”, Raíssa Mota.
Com apoio da mãe, Raíssa foi para São Paulo em 1993. Dona Teresinha deixou as portas do lar abertas, caso a filha quisesse voltar. Em junho daquele ano, a jovem embarcava de carona num caminhão na BR – 316. Sem dinheiro, ela partiu apenas com uma mochila. Dentro dela, produtos de higiene, três vestidos, uma bermuda jeans, uma sandália e a libertação. “Fui só com a cara e a coragem. Queria sair da prisão em que vivia. Queria fazer show. Sempre gostei de dançar. Queria ganhar dinheiro, botar silicone, ficar mais feminina e ajudar a minha família”.
Raíssa(centro)num congresso em Brasília.
Três dias e três noites sem dormir até chegar em São Paulo. Quando desembarcou à noite na cidade em plena Marginal Pinheiros, Raíssa foi levada para a delegacia junto a outras travestis. Lá, passou a noite e conheceu outras, uma inclusive tinha sido vizinha de bairro. Na manhã seguinte, Raíssa começava uma nova vida. E vender o corpo fazia parte dela. “Em São Paulo, a travesti não tem voz e a única forma era se prostituir. Igual aqui em Belém. Aqui ainda é assim”.
A doença
Em 94, Raíssa ganhou de um cliente 800 dólares para realizar o sonho de colocar silicone. “Ele saiu comigo, pensava que eu era mulher. Mas na hora viu que não. Aí contei minha história pra ele, e ele tirou o dinheiro da carteira e me deu. Fui pra casa e a cafetina disse que eram dólares. Eu pensei que era dinheiro de mentira, porque nunca tinha visto aquele tipo de dinheiro”, lembra.
Ela comprou dois litros de silicone de algas marinhas. A própria cafetina foi quem fez o procedimento. A morte de Paula e a descoberta da doença alardearam Raíssa. “Naquela época a mídia divulgava mais que se pegava Aids por relação sexual. Estava ainda a história do Cazuza e tudo. Fui fazer o teste, mas eu já sabia. O primeiro, o segundo e o terceiro deram negativo. O médico me perguntou porque eu tinha feito tantos testes e expliquei. Ele me disse que com a experiência como infectologista provavelmente eu tinha Aids, mas deveria voltar com seis meses, porque nada seria detectado devido à janela imunológica (quando o exame não detecta o vírus)”, conta.
Seis meses depois, o resultado foi positivo. Raíssa já vivia as voltas com drogas, bebidas e noitadas, a nova realidade aflorou os excessos. “Eu me joguei nas drogas e me aprofundei. Experimentava todos os dias. Passava três, quatro noites sem dormir, só usando crack. Esqueci família, compromissos, tudo”.
Raíssa foi presa, acusada de assalto. Passou um ano e seis meses no Carandiru. Com a liberdade, estava decidida a mudar sua história. Parar de usar drogas, acabar com a vida desregrada. Em 1996 voltou para Belém, ainda chegou a se prostituir por um mês, até conhecer os movimentos em defesa dos homossexuais e parou, ainda em 96. E desde 97, ela anda pelos principais pontos de prostituição de Belém, como a avenida Almirante Barroso e a travessa Piedade, distribuindo camisinhas, alertando sobre os perigos das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e a importância da prevenção.
Tratamento
Há 16 anos Raíssa convive com o universo da Aids. Toma 30 comprimidos diariamente. Quinze quando acorda, entre eles os específicos para combater o vírus, o anticoncepcional para deixar o corpo feminino, o para controlar a epilepsia. E os da toxoplasmose - uma das muitas doenças oportunistas que se aproveitam do frágil sistema de defesa dos portadores de HIV e desenvolvem a síndrome.
Raíssa teve 16 internações em decorrência dessas doenças. Para quem tem Aids, o pior são as doenças oportunistas. Elas podem matar tanto quanto o preconceito, seja ele velado ou escancarado. “Nunca sofri preconceito, nunca percebi. Mas sei que ele existe e sempre vai existir”, avalia.
Doze horas depois, ela toma outros 15 comprimidos. Vai uma vez por mês ao médico verificar o estado de saúde. Porque sabe: mesmo sentido-se bem, ela não está curada. “No início a maior dificuldade são as quantidades de remédios, com o tempo a gente se acostuma. É como se tivesse tomando um remédio pra gripe”, compara.
Os efeitos colaterais acompanham desde o início. O cabelo caiu. Raíssa ganhou peso. Dos 68 quilos ideais passou para 75, depois recuperou a forma, graças à dança e à quadra junina, quando Raíssa fica completamente envolvida com a quadrilha Ídolos Juninos, do bairro de Fátima. Ela sai de Miss Caipira da quadrilha e participa das competições promovidas na cidade.
Ela não para. Vive viajando e andado de um canto a outro, tanto da cidade como do país. Congressos, encontros, cursos voltados para os direitos dos travestis e das pessoas vivendo com HIV/Aids. Ela dança, faz rifa de leite Ninho para complementar o amparo social que recebe. Estuda o primeiro e o segundo ano na escola estadual Deodoro de Mendonça e todas as quintas, sextas e sábados percorre as ruas de Belém fazendo campanha de prevenção de DST. Uma vida como a de qualquer pessoa.
Raíssa chora, ri, namora. Arruma-se, cuida do cabelo, das unhas, do corpo, passeia, faz amor com camisinha. Dubla Elza Soares. “Acho ela legal, gosto do estilo dela”. Não abre mão de comer bem. Adora frango assado, tacacá, lasanha com uma Coca-Cola bem gelada. “Eu posso não ter saúde, mas eu tenho vida”. E o que Raíssa mais faz é viver.
“Ela é um misto dentro de uma inconstância. Ela é a Raíssa humilde, guerreira, da periferia, conhecida por todos no bairro e em Belém pela militância dela. É a quadrilheira, carnavalesca, social, representante de movimento. A unidade dentro da diversidade. Com ela não tem tempo ruim”, descreve Augusto, amigo, vizinho e presidente da quadrilha Ídolos Juninos.
Desejos
Descansando com a amiga, Cris, durante congresso em Brasília.
Raíssa quer colocar prótese de silicone. Dessa vez, seguindo os procedimentos corretos, numa clínica especializada, bem longe da clandestinade.
Alimenta a vontade de contar suas histórias de tristezas e alegrias num livro. Já tem até o título da obra: “A vida de uma travesti como ela é”. Com o livro, ela espera mostrar os dois lados das escolhas que fez. “Eu não me arrependo de nada, mas procurei mudar, seguir outros caminhos e fazer diferente as coisas”, ressalta.
Ela pretende legalizar a Associação de Travestis e Transexuais do Pará (Astrap), da qual é presidente. Assim, acredita que a classe poderá lutar com mais garra por seus direitos. “Se os negros e as mulheres têm hoje suas leis é porque se articularam”. Esse mesmo espírito de união e força, Raíssa leva para o Grupo Homossexual do Pará (GHP) e para a Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/AIDS (RNP+). Duas entidades paraenses na defesa dos direitos humanos de quem vive com HIV/AIDS.
“Eu posso não ter saúde, mas eu tenho vida”, Raíssa.
A descoberta da cura não é um desejo, muito menos sonho. Raíssa tem certeza da existência dela. No entanto, a indústria da Aids fatura muito mais com a venda de remédios e todo mercado em torno da doença. “Ela já existe, e está aqui na Amazônia”, afirma.
Raíssa não se importa, ela é feliz de qualquer forma. Claro, se pudesse voltar no tempo, jamais teria se infectado. Mas aconteceu, e convive com isso. “Aceito, porque a Aids é uma doença que não tem cura, mas tem tratamento. O negócio é ter cabeça erguida e terminar de jogar a partida, porque isso não deixa de ser uma partida de futebol”.
Mulher, mãe, soropositivo
Se Raíssa sabe exatamente como, quando e quem lhe transmitiu o vírus, essa é uma certeza que Maria Elias Silveira não tem. Aos 31 anos, há dez ela vive com HIV/AIDS e já se passaram cinco anos tomando medicação. “Não sei quem foi que me passou. Não conheço nenhum namorado ou ex-marido morto por Aids. Os pais dos meus filhos morreram de outras causas”.
Maria Elias tem dois filhos: Paulo Sérgio, 17; e Mayran Taleesa, 13 anos e um ex-marido chamado Flávio, 26. E ela faz questão de dizer. “Nenhum deles tem Aids”.
A história de Maria Elias com Flávio parece saída de um conto de fadas. Eles se conheceram, se apaixonaram, se amaram. Ela com 26. Ele com 19. Flávio queria transar sem camisa, mesmo sabendo a verdade. Queria ter um filho com May - como gosta de ser chamada. May não queria. “Sou contra mulheres soropositivo tendo filhos. Não sei quanto tempo vou ficar do lado deles. E para ter um filho iria infectá-lo. Não seria justo”, analisa.
Brigas seguiram – se durante os sete anos de união por conta disso. E foram inflamadas pela dedicação intensa de Maria Elias à luta contra a Aids. “Ele me perguntava porque me doava tanto, dizia que não ia adiantar. Mas eu gosto, eu quero. Se não tiver ninguém trabalhando, fazendo barulho as coisas não saem. Essa militância vai fortalecer isso. A cura pode não vir pra mim, mas virá para outras pessoas. Onde tiver espaço para estar falando de Aids, lá eu estou”, destaca.
Marias Elias. Militância constante na luta contra a Aids.
Mas quando May, em 2006, ficou dois meses internada para tratar de uma tuberculose ganglionar, Flávio estava lá. “É um amor que é surreal, a gente quase não vê isso. Ele era louco pra ter um filho. Mas como vou poder contar minha história bonita se eu infectasse uma pessoa?!”, indaga.
Há cinco meses, cada um seguiu destinos opostos. Eles moram lado a lado na passagem Santa Paz, no bairro da Cabanagem e não se falam. Ela mora numa casa humilde de dois cômodos, sem reboco nas paredes, sem forro no teto. Vive com os filhos, cachorros e gatos, mesmo não podendo ter animais em casa. “Minha filha adora bicho”, explica. Flávio mora na casa ao lado com a mãe. E o casal separado ainda se ama.
A Aids e os outros
Maria Elias era jovem, muito jovem quando uma folha de papel lhe sentenciou não à morte, mas à vida sem saúde. Ela tinha 21 anos e muitos projetos. Saiu de casa aos 12anos, foi mãe pela primeira vez aos 13, pela segunda vez aos 17. Tudo sempre muito cedo na existência de Maria. Porém, não se entregou e nem quis virar coitada, doente, pobrezinha, desenganada. Ela exibiu força, vontade e coragem. Virou militante da causa, coordenadora de ONG, mulher de fibra, leitora assídua, incansável.
“Pra uma coisa que tu não conheces bem, tudo é estranho. A gente vive à base de droga. Eu não tenho apetite, tenho efeito sanfona, tem as doenças oportunistas, essas coisas assustam. Mas comecei a ler, a me informar. Não fiquei frustrada, só procurei lidar com essa situação e buscar qualidade de vida”.
Buscar qualidade de vida é a luta diária de quem vive com HIV/Aids. Sem ela, as doenças oportunistas destroem o equilíbrio vital dos pacientes e os condenam ao sofrimento. Maria já teve viroses, infecção intestinal, em quase todas parou no hospital. “Uma hora você está bem, outra não. Pra um soropositivo uma gripe é um fiasco, uma tosse é um fiasco. A medicação pra Aids é gratuita, a das doenças oportunistas você precisa comprar, e nem sempre esses remédios existem na farmácia popular. Tenho uma medicação que custa 180 reais, pra alguém com um salário mínimo, que vive de artesanato e tem dois filhos pra criar, esse dinheiro faz muita falta”, desabafa.
As drogas diárias de Maria Elias
Quando a família do marido soube da doença, foi aquela preocupação. May, de cabeça erguida, pediu para Flávio fazer o teste de HIV. Como esperado, deu negativo e Maria Elias fez questão de mostrar o resultado para a família inteira.
“Eu sempre dizia que tinha Aids e muitos [parceiros, namorados] iam embora, sumiam, desapareciam”, Maria Elias.
São as várias facetas do preconceito, demonstradas não em frases declaradas, mas em atitudes camufladas. Discriminar, xingar, evitar, calar. Cada ser humano tem uma forma de revelar sua própria ignorância. “É uma faca de dois gumes. De certa forma eu levo uma vida normal. Quando toda minha família sabe e não me discrimina. Não é normal quando você se depara com pessoas que por falta de conhecimento ou sei lá o quê, numa briga, ou em outro momento, solta algo que você não quer ouvir, mexendo na ferida”.
Maria Elias já perdeu a conta dos relacionamentos interrompidos ou nem sequer iniciados. “Eu sempre dizia que tinha Aids e muitos iam embora, sumiam, desapareciam”.
Elias não ecoa para Deus e o mundo o fato de ser portadora de HIV. Não interessa aos outros, somente à família e aos amigos. Contudo, a cautela tem um sentido mais profundo. “Eu vivo de artesanato, de fazer unha decorada. Quem vai comprar um objeto feito por mim? A pessoa vai logo pensar que eu posso ter me ferido e caiu sangue ali. Fazer a unha, então!”.
Sonhos
A mãe, mulher, militante planeja o futuro. Almeja conquistas, deseja realizações. Fazer faculdade de Serviço Social é um desses desejos. “Quando a gente vive na soropositividade, a gente sabe perfeitamente como tudo funciona. Quero trabalhar com os companheiros soropositivos. Percebo que a maioria dos assistentes sociais atrapalha a vida da gente, quando deveriam ajudar. Não estão preparados para trabalhar com pessoas nessa condição”, critica.
Assim como Raíssa, ela acredita numa cura já encontrada, mas não divulgada. “Eu sei que já existe, mas ninguém vai dar uma cura, quando se pode lucrar tanto com a venda de remédios. É o capitalismo. É preciso aparecer uma doença pior do que a Aids pra cura surgir”, opina.
Maria Elias sonha com algo mais palpável. Podem lhe tirar tudo, menos os sonhos, porque, como diz Zuenir Ventura ‘só não podemos perder a capacidade de sonhar’. E ver os filhos crescerem é um deles. “Quero viver bastante para vê-los maiores”, diz.
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