Ando com uma preguiça incrível de comentar, resenhar, criticar os livros que tenho lido. Mas me sinto culpadíssima por, no mínino, não destacar trechos de obras que valem a leitura. É o caso de Trem-Bala, da Martha Medeiros. Lançado em 1999, o título reúne uma série de textos sobre as reflexões da autora em relação à vida. "Gosto demais desse título, tem a ver com a velocidade dos dias, a urgência dos nossos desejos. Tive essa ideia de repente, minutos antes de pegar no sono, e quando acordei de manhã escrevi uma crônica chamada Trem-Bala só pra publicá-la no encerramento do livro", explica Martha.
O livro é facilmente encontrável em qualquer livraria ou sebo decentes. Não passa de 20 reais. Um textículo de 1997 como estímulo:
Crônica do Imediato
O tempo divide-se entre o ontem, o hoje e o amanhã. Ontem já foi, e amanhã, vá saber. Dito assim, fica fácil perceber qual das três etapas é a mais importante. O presente, lógico. O passado é importante pela bagagem que você traz de lá e o futuro só é importante no plano da abstração e da fantasia, porque ninguém o alcança: estamos todos presos neste exato momento.
Diante dessa visão simplista, passado e futuro transformam-se apenas em sinalizadores
de calendário, em semântica para designar quem você foi e quem você pretende ser quando crescer. No entanto, são justamente esses dois tempos que monopolizam o planeta.O presente, coitado, não tem armas para combater duas superpotências chamadas Lembrança e Expectativa.
O passado é um álbum de fotografias onde as cenas fora de foco não entram. É a realidade revisada: recordar é esquecer a banalidade dos fatos. Um encontro amoroso, o que é? Duas pessoas que se olham, se tocam, se beijam, discutem, fumam, se beijam de novo, implicam uma com a outra, riem, fazem juras eternas, espirram. Esse encontro, 24 horas depois, será lembrado com mais boa vontade: a fumaça do cigarro, as pequenas implicâncias e os espirros sumirão da memória. Ficarão os beijos, as palavras e os olhares. Foi um encontro mais ou menos agradável, mas será lembrando como mágico. A saudade faz tudo subir de escalão.
Suas férias estão sendo boas, mas chove há três dias, a cabana que você alugou não era bem como o corretor descreveu e você está sentindo falta, não conte para ninguém, do trabalho! Mas ao voltar para casa, a lembrança tratará de aperfeiçoar aqueles 30 dias em Comboriú e você não cansará de dizer que suas férias foram magníficas. Até mesmo dores antigas ganham novo status ao serem recordadas: dor-de-cotovelo vira aprendizado e aquela vontade de se atirar embaixo de um ônibus vira um profundo processo de autoconhecimento. Ter sofrido no passado é sempre didático.
O futuro é outra flor de simpatia. A expectativa veste a todos muito bem, coloca sábias palavras em nossa boca e uma fortuna em nosso bolso. A megasena acumulada que será sorteada daqui a alguns dias, a entrevista de emprego marcada para quinta, o próximo verão em Punta, não sairá tudo como planejamos? Quem dera. A realidade nunca foi páreo para a imaginação.
Fica o presente, então, encurralado entre esses dois períodos emblemáticos, o passado e o futuro, quando na verdade ele é que deveria ser a estrela da festa. O antes e o depois são apenas figuração: durante é que o desejo é real, que as pernas tremem, que o coração dispara, que o abraço ainda está quente. A vida é breve e só existe esse instante. Amanhã um pintor de paredes estará cobrindo o chão com esse jornal e minha crônica servirá de capacho para um tênis sujo de tinta. Tic-tac, tic-tac. O tempo não perdoa.
Um comentário:
Excelente matéria. Texto esclarecedor e pessoal ao mesmo tempo. Parabéns.
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